Porcos, ovelhas e galinhas na vinha. Solos mais saudáveis

A utilização de animais na vinha substitui o uso de herbicidas e melhora a qualidade dos solos. Também dá mais vida às quintas que valorizam a biodiversidade.

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A porca Octávia e as crias, numa das vinhas de Filipa Pato e William Wouters. Tiago Lopes

Não estão a inventar a roda, mas vão mais à frente nesse desígnio que já é de muitos produtores de ter uma viticultura mais sustentável. Depois das ovelhas, que já vemos há mais tempo em algumas quintas e herdades do país, chegam (ou regressam) às vinhas os porcos e as galinhas.

Não falamos de animais conduzidos pelo homem em patamares estreitos e/ou parcelas de difícil acesso, como acontece por exemplo com os machos (ou mulas) utilizados ainda em várias propriedades do Douro, mas sim de animais que trabalham sozinhos na vinha.

Filipa Pato e William Wouters têm 20 hectares de vinha na Bairrada, 14 estão certificados em agricultura biodinâmica e seis em agricultura biológica (e em processo de conversão para a biodinâmica). Algumas vinhas são “muito velhas e trabalhar com elas em biodinâmica é muito complexo”, explicam. “Só o facto de não usarmos herbicidas é um desafio. Tínhamos de roçar as ervas à mão muitas vezes. Com os porquinhos, eles focinham a terra, sempre à volta da cepa, e vieram poupar-nos muito esforço físico”, detalha Filipa.

Os porcos não substituem as pessoas na vinha, mas poupam-nas a “um trabalho que é duro”, sublinha a produtora e enóloga, enquanto tenta apresentar ao Terroir a porca Octávia, que chegou em Dezembro com a irmã Olívia. Foi a primeira a ter crias do macho que Filipa Pato comprou, entretanto, para fazer criação. Seis porquinhos, nascidos no início da vindima – foi “uma aventura” mudar os porcos antes da campanha, conta –, agora com cerca de sete semanas.

Quando visitámos as vinhas da produtora, Olívia estava mais resguardada, à espera de parir. “Quis arranjar um animal que não fosse pesado. E estes porcos são animais pequenos, uma mistura de uma raça vietnamita com leitão da Bairrada”, explicou-nos Filipa Pato, enquanto nos mantínhamos à distância recomendada.

“É incrível o trabalho que fazem e isto estava muito compactado. Parece que esta terra foi lavrada”, sublinhava a engenheira química de formação, esfarelando nas mãos um pedaço de argilo-calcário. “Estrumam ao mesmo tempo” a terra, o que, com o composto, permite à produtora ter zero adubos na vinha. “A utilização de animais ajuda-te a reter água no Verão. No argilo-calcário, se tivermos boa carga orgânica, tudo se equilibra.”

Filipa já tinha experiência com ovelhas, de um pastor vizinho, mas o rebanho só podia ficar na vinha no Inverno, quando as videiras estão em estado de dormência. E fez um teste com galinhas, não funcionou… por haver ali raposas. Aos porcos, a família está a afeiçoar-se de tal forma que a produtora quer reservar um talhão pequeno “só para eles”. “Merecem.” Durante a nossa visita, era vê-la atirar-lhes alguns cachos de uva branca, que tinham ficado nas vinhas, e eles a abanarem o rabo de felicidade.

Por norma, comem “uma ração biológica” e têm sempre água (“É super importante. Os porcos bebem muita água.”), mas “gostam muito de uvas”. E durante as mondas foram comendo um cacho aqui, um cacho ali. Os vindimadores até preferem alimentá-los a ter de deitar os cachos fora. E, sem vigilância, não há o perigo de os animais limparem as videiras, porque, explica Filipa, na Bairrada “as cepas são mais altas”.

Quando está calor, a pequena vara, protegida por cercas electrificadas, abriga-se à sombra das árvores que existem na vinha. A biodiversidade é um dos pilares da biodinâmica e nas vinhas de Filipa e William não faltam plantas e arbustos que atraem insectos auxiliares, benéficos para a cultura da vinha.

Em vez de lacre, o casal já usa em muitas das suas garrafas – a produção anual total ronda as 100 mil, 90 por cento para exportação – cera de abelha de colmeias de vários produtores em Óis do Bairro, Anadia, onde estão sedeados, mas a médio prazo quer ter colmeias próprias. Nada de plástico na garrafa. E na vinha evitam-no ao máximo. Outra novidade será um espaço dedicado ao enoturismo e a ampliação da adega, ambos com projecto aprovado.

Filipa Pato e a porquinha Octávia, na Bairrada. Tiago Lopes
Filipa Pato e William Wouters acolheram na vinha as porcas Octávia e Olívia na vinha em Dezembro. A primeira já teve crias, depois de os produtores terem comprado também um macho.
Filipa Pato está satisfeita com o trabalho dos porcos no argilo-calcário da Bairrada: “é incrível o trabalho que fazem e isto estava muito compactado. Parece que foi lavrado”. Tiago Lopes
O uso de animais na vinha é mais um passo na proposta de Filipa Pato e William Wouters, de fazer "vinhos sem maquilhagem" e de ter um negócio sustentável a todos os níveis. Tiago Lopes
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Filipa Pato e a porquinha Octávia, na Bairrada. Tiago Lopes

Uma situação “win-win"

Na Quinta da Lomba, em Gouveia, no Dão, a Niepoort tem 40 ovelhas a “passear” na vinha, pela fresca e à noitinha. “Temos as ovelhas desde o ano passado. E, no Inverno, a ideia é pôr as ovelhas e se calhar os burros também na vinha. Fechar parcelas e deixá-los lá. Funciona bem, já fiz isso na Alemanha, em Mosel [onde a Niepoort faz os vinhos Fio]. Mas lá eram menos, não é zona de ovelhas. No Dão muita gente tem ovelhas. E há um senhor que trabalha connosco que tem ovelhas. Nós estarmos a utilizá-las é uma situação win-win”, conta o director de enologia da Niepoort, Daniel Niepoort.

Têm o espaço delas na propriedade e o pastor leva-as a pastar na vinha duas vezes por dia. Comem as ervas, onde não é preciso aplicar herbicidas. E as suas fezes ajudam a adubar o solo, mas não é só isso. É matéria orgânica que também é utilizada para fazer composto e que “dá muita vida ao solo”, explica Daniel.

“E nós queremos ter o máximo de bichos e de vida [na quinta] para o solo estar super saudável. Tem vantagens para a vinha. [Por exemplo] segura melhor a água”, continua. “As ovelhas só vão para a vinha depois da vindima” para não comerem nem as folhas nem as uvas. E têm de ser retiradas “depois da poda, antes da floração”.

Na quinta que a Niepoort tem no Dão, já há ovelhas a trabalhar a terra e, este Inverno, Daniel equaciona pôr também nas vinhas Tita e os outros burros da quinta. Anna Costa
Daniel Niepoort é o actual director de enologia da Niepoort. Fotografámo-lo na Quinta da Lomba, no Dão, em Julho. Anna Costa
A Quinta da Lomba fica em Gouveia, na encosta da serra da Estrela, e é a menina dos olhos de Daniel Niepoort. Anna Costa
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Na quinta que a Niepoort tem no Dão, já há ovelhas a trabalhar a terra e, este Inverno, Daniel equaciona pôr também nas vinhas Tita e os outros burros da quinta. Anna Costa

Encontrámos a mesma reserva ao falar com Paulo Nunes, enólogo da Casa da Passarella e consultor na Madre de Água, ambas no Dão. Embora o pastor com quem trabalha na Passarella lhe garanta que as ovelhas só comem as uvas quando estas estão doces e que na fase pré-pintor ainda é seguro deixá-las andar na vinha.

“A Madre de Água é um projecto provavelmente único no país, dada a diversidade produtiva que tem. Vinhos, queijo da Serra, azeite. E esta amplitude de negócio – tem rebanho próprio – torna inevitável essa associação. Por um lado, estamos a alimentar o rebanho e, por outro, a controlar as ervas daninhas, as pragas que temos na vinha, sem que isso implique mobilização de solo”, explica Paulo Nunes, enólogo consultor na quinta situada em Gouveia há quase uma década.

As ovelhas não mobilizam os solos como os porcos, mas nos solos graníticos, arenosos, do Dão isso “não é fundamental”. São solos “muito drenados, em que existe muito oxigénio, porosos”, em que a matéria orgânica “é facilmente incorporada”, explica Nunes. Mas há poupança na mesma ao nível da utilização de maquinaria: “se tiver de fazer correcções de matéria orgânica no solo, vou ter de usar equipamento agrícola para o fazer. Se não preciso corrigir, são menos operações, menos um custo. Troco o tractorista pelo pastor.”

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Paulo Nunes é enólogo da Casa da Passarella e da Madre de Água, no Dão. Em cada um dos projectos, há cem ovelhas a trabalhar a terra no período de dormência das videiras. Anna Costa

As ovelhas – uma centena hoje – já eram usadas nas vinhas de Luís Gonçalves e Lurdes Perfeito, os proprietários, antes, “pelo menos desde 2008 ou 2009”. “Ficam até Fevereiro, Março, com liberdade total”. E mesmo antes de a quinta ter rebanho, não se usavam herbicidas, o que preparou os solos para as ovelhas, digamos. Andam por lá à vontade. Tão à vontade, que Paulo se lembra de uma história hoje engraçada, à data nem por isso.

“O pastor nem precisa de indicação para introduzir as ovelhas nas vinhas. Houve um ano que eu tinha deixado uns cachos para trás na vinha para fazer uma colheita tardia e fiquei sem uvas, porque as ovelhas as comeram. Tinha a Botrytis Cinerea instalada na vinha e pensei: é este ano que vou fazer uma colheita tardia. Não foi.”

Voltando ao outro pastor, o da Casa da Passarella, de nome Fernando Pimenta, como o canoísta, esse parceiro, que coloca lá cem ovelhas no Inverno, garante que é possível manter o rebanho mais tempo na vinha. “O Fernando tem vinhas, ali perto de Vilarinhos, faz um queijo fabuloso e faz a desfolha das vinhas das vinhas dele com o rebanho. Ele diz-me que a ovelha naturalmente só come a uva quando sente açúcar e que na fase pré-pintor não come a uva por isso, só come a folha.” E então? “Ainda não o deixei fazer a desfolha, só faz isso nas vinhas dele”, conta Paulo, que dá o benefício da dúvida a quem sabe, mas para já não arrisca.

Um galinheiro móvel

Sérgio Nicolau, dos vinhos Família Nicolau e “quinta geração de agricultores regenerativos”, em Torres Vedras, região vitivinícola de Lisboa, introduziu há dois anos na vinha ovelhas e cabras de um vizinho pastor, mas também dez galinhas. E tem agora a ideia de construir um galinheiro móvel, para cobrir os dez hectares das duas parcelas em São Mamede da Ventosa.

“Primeiro veio a agricultura biológica, quando o meu pai se reformou e me perguntou se queria pegar nas vinhas de família, eu disse que pegava com a condição de trabalhar em biológico”, partilha o produtor, que reconverteu as vinhas para o biológico em 2018.

Entretanto, o conceito evoluiu e Sérgio, que também é co-fundador da empresa Orgo – Regenerative Biology Management, começou a pôr em prática os princípios da agricultura regenerativa (“vai mais além do biológico”; ainda não existe certificação), um deles é usar os animais na vinha. “Para melhorar o solo, para o solo ficar mais saudável, fértil, tê-lo sempre coberto de plantas”, explica.

Em 2020, tinha plantado Viosinho, Alvarinho, Arinto e Fernão Pires no lugar de outras castas que ali estavam (“uvas para muita produção e pouca qualidade”). “Quando estavam plantadas, comecei a semear prados permanentes multiespécies, para ter o máximo de diversidade possível. Comecei a integrar as ovelhas, o que é algo que o meu avô e bisavô já faziam. Aliás toda a gente aqui na zona fazia.”

As ovelhas e cabras só ficam durante o Inverno, quando as videiras estão em dormência; as galinhas podem andar na vinha o ano inteiro e não chegam aos cachos. Mais leves, também “fertilizam e mobilizam [o solo] com as patas, mas de forma muito superficial, arejam”.

Sérgio Nicolau, dos vinhos Família Nicolau (Lisboa), introduziu há dois anos na vinha ovelhas e cabras de um vizinho pastor, mas também dez galinhas. Sérgio Nicolau / Direitos Reservados
"As galinhas podem andar na vinha o ano inteiro e não chegam aos cachos", explica o produtor Sérgio Nicolau, dos vinhos Família Nicolau. Sérgio Nicolau / Direitos Reservados
Na propriedade da Família Nicolau, em São Mamede da Ventosa, Torres Vedras, há certificação biológica mas pratica-se já uma agricultura regenerativa. Sérgio Nicolau / Direitos Reservados
O objectivo do produtor Sérgio Nicolau, ao usar os animais na vinha, “é promover alto impacto animal no mais curto espaço de tempo”. Sérgio Nicolau / Direitos Reservados
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Sérgio Nicolau, dos vinhos Família Nicolau (Lisboa), introduziu há dois anos na vinha ovelhas e cabras de um vizinho pastor, mas também dez galinhas. Sérgio Nicolau / Direitos Reservados

Sérgio Nicolau quer chegar às cem galinhas e construir-lhes “um galinheiro móvel”. Para já, está a experimentar a mobilidade com cinco das dez galinhas que tem perto de casa e a expectativa é ter essa outra engenhoca, maior, “para o ano que vem, antes da vindima de 2023”. Quer começar com 50 galinhas, o que já lhe permitirá “aumentar a fertilidade dos solos e ter mais uma fonte de rendimento, vendendo os ovos certificados em biológico e eventualmente alguma carne.”

Com os cobertos vegetais, há “toda a vantagem em ter os animais” na vinha, sublinha o produtor. O seu objectivo “é promover alto impacto animal no mais curto espaço de tempo”. Daí a mobilidade: trabalhar o próximo talhão, enquanto o anterior regenera.

“É um voltar atrás. Não havia uma casa agrícola que não tivesse galinhas, porcos, ovelhas. Depois as pessoas começaram a especializar-se numa só actividade”.

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