Um olho no palco e outro no telemóvel

Porque continuamos tão agarrados à ideia de não aguentar duas (demasiado longas) horas sem tocar no telemóvel em salas de cinema e teatro?

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Enquanto os concertos são liberais na relação do público com os telemóveis, o teatro e o cinema não seguem pelo mesmo caminho. Nem se deseja tal coisa. São para ser apreciados à antiga, como se a tecnologia não entrasse na sala pelo bolso do público. Mas porque continuamos tão agarrados à ideia de não aguentar duas (demasiado longas) horas sem tocar no telemóvel em salas de cinema e teatro?

Dizia-se que “a juventude não sabe viver sem o telemóvel na mão”, expressão só utilizada porque quem já deixou fugir a sua, mas o problema é transversal a qualquer idade. Tal como um filme de sábado à tarde, é dos 8 aos 80. Será falta de respeito, sensibilidade ou inconsciência colectiva? Seja o que for, é partilhado entre o público e o elenco da peça, enquanto no cinema o elenco não se chateia nem se distrai com os distraídos de telemóvel na mão.

O teatro e o cinema partilham a mensagem que já todos sabemos. “Telemóveis em silêncio”, mas eles tocam. “Telemóveis desligados”, mas eles brilham e é no escuro que são visíveis a todos. Mais uma vez, no cinema ajuda a distrair os vizinhos de fila, como se a tarefa de estar focado durante tanto tempo não fosse já uma missão impossível para a velocidade de 2022. Ir ao cinema é parar um bocadinho a nossa vida para viver outra mais dramática, divertida ou emocionante. Aqui, o telemóvel que brilha no escuro é o despertador deste pequeno sonho. Tal como que nos acorda para trabalhar, é um desmancha-prazeres.

No teatro, não é só o público que sofre. Este “despertador de realidade” também retira o foco de quem nos está a entreter, obrigando-os a um esforço adicional. Pode parecer mais fácil em comédias onde se pode improvisar com a distracção vinda do público, aproveitando-a para uma reprimenda memorável. Mas nem sempre é fácil, enquanto cada telemóvel num bolso mal comportado é sempre apanhado por quem pisa o palco. Já imaginaram fazer isto a outra profissão?

Não distraímos o cozinheiro que nos faz o jantar num restaurante. Não vamos distrair o piloto que nos leva de avião, nem o motorista que nos guia de autocarro. Muito menos vamos distrair o médico que nos diagnostica ou o dentista que está prestes a dançar com uma broca vibrante na nossa dentição. Assim sendo, porque continuamos a querer distrair o público que partilha connosco o mesmo gosto cinematográfico? Porque tentamos distrair os actores que no fim aplaudimos como se fôssemos inocentes?

Podemos culpar a pandemia e os maus hábitos criados a ver filmes e séries no sofá, onde o entretenimento é quase música de elevador. Há uma nova notificação irrelevante para ler, uma mensagem por enviar, um like por largar numa qualquer publicação. Eu não sou perfeito e também já o fiz no cinema, inconsciente a ver as horas sem ter horas para onde ir.

Sei que é cedo para presentes de natal e desejos de ano novo. Também admito que estou a escrever este texto enquanto vejo episódios repetidos de uma série que já vi. Está a ser a minha música de elevador, mas em 2023, eu desejo que todos os filmes e peças de teatro sejam sempre merecedoras do nosso palco principal. Do meu, e do teu.

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