Um Calvin e Hobbes de domingo é uma das mais valiosas tiras de BD de sempre

Um painel de domingo assinado por Bill Watterson foi vendido por 465,3 mil euros, valor só equiparado pela primeira tira de sempre de Flash Gordon.

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O painel de domingo que rendeu quase meio milhão de euros Heritage Auctions/Bill Watterson/Lee Estate

Além de uma das mais acarinhadas séries de BD do mundo, Calvin e Hobbes são agora também protagonistas de uma (de duas) das mais valiosas tiras de banda-desenhada de sempre. Um painel de domingo, mais longo, colorido à mão e assinado por Bill Watterson, foi vendido em leilão por 465,3 mil euros de euros na semana passada, equiparando-a a outro desenho, de Flash Gordon, arrematado pelo mesmo valor em 2020.

Autografada por Bill Watterson, o reservado autor de Calvin e Hobbes e dedicada a “Lee”, o seu editor e mais tarde presidente da Universal Press Syndicate (UPS), a página mostra uma curta aventura da dupla em que sobem a uma colina e tentam, com a velocidade atingida pelo carrinho de rolamentos em que se enfiam, viajar no tempo e chegar ao futuro. “Como achas que será o futuro?”, pergunta Hobbes a um Calvin sorridente. “Quem sabe? Carros voadores e cidades construídas nas nuvens, talvez.” A viagem termina sem grandes mudanças, mas Calvin está contente — afinal, passaram dois minutos desde que encetaram a viagem e por isso, tecnicamente, estão no futuro.

“Hmmm… As coisas não melhoraram. Estou desiludido”, conclui Hobbes.

O painel está então endereçado a Lee Salem, o editor que deu a primeira oportunidade de trabalho a um jovem Bill Waterson e cuja UPS (uma empresa que distribuía conteúdos para imprensa em vários mercados) que espalhou pelos jornais do mundo as tiras diárias de Calvin e Hobbes — entre os quais, o PÚBLICO, que publicou as histórias introspectivas e sonhadoras da família de Calvin na sua última página durante anos; mais tarde, as tiras foram também publicadas no diário Correio da Manhã. As tiras e painéis foram compilados numa série de álbuns best-sellers em todo o mundo, editados em Portugal pela Gradiva.

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Calvin e Hobbes numa ilustração de Watterson, vendida por 116 mil euros, e que nunca foi publicada

O painel leiloado no passado dia 17 data de 24 de Maio de 1987 e trata-se de uma história de domingo, por isso em formato quadrado e com mais espaço para desenvolver a curta intriga. O imaginativo miúdo e o seu amigo tigre participam numa aventura cujo valor aumenta por se tratar de uma história dos seus primeiros anos. Os restantes elementos que tornam a tira tão valiosa prendem-se com o ethos de Watterson: feroz defensor dos seus originais e das suas personagens, não quis comercializá-las mais do que a sua presença em livros e em mais de 2400 jornais em todo o mundo.

A raridade da ida ao mercado de um original, e ainda por cima colorido com aguarela pelo próprio Watterson, tornou esta peça muito cobiçada. Foi o segundo painel de domingo colorido à mão de Watterson que alguma vez foi a leilão (o primeiro foi à praça em Setembro) e fez parte da venda dos pertences de Lee Salem — que incluiu outra ilustração de Watterson, vendida por uns mais tímidos 116 mil euros, e que nunca foi publicada. É uma imagem de Calvin e Hobbes a lerem jornais, comentando a iliteracia dos adultos que assim não podem ler artigos tão importantes quanto “Mulher casa com clone alienígena de Elvis” ou “Fergie e [Lady] Di lutam no Bronx”.

O painel principal equiparou-se então à venda da primeira tira de sempre de Flash Gordon, em 2020, e faz agora parte da história.

“Todos aqui [na leiloeira Heritage Auctions], e todos os coleccionadores com quem falámos, sentimos que Calvin e Hobbes está no cume da História da arte das tiras [de BD] para jornais, por isso é muito gratificante ver os preços finais reflectir isso mesmo”, disse o vice-presidente da leiloeira, Todd Hignite, em comunicado após a venda. “Não só são obras extraordinárias como pertenceram ao homem que descobriu e acarinhou Watterson”, assinalou ainda. Outro elemento terá sido o facto de se tratar de um painel de domingo, cujo formato, dimensão e paginação nos jornais Bill Watterson contribuiu para mudar nos anos 1980.

O comunicado não resiste a uma piada para entendidos — “Como disse Hobbes, ‘Van Gogh podia ter vendido mais do que uma só pintura se tivesse posto tigres nos seus quadros’”.

Calvin e Hobbes nasceram em 1985 e foram publicados diariamente até 1995, sendo republicados e editados mundo fora nos anos seguintes. Bill Watterson, nascido em 5 de Julho de 1958, em Washington, e licenciou-se em Ciência Política. É um ilustrador multipremiado e um reconhecido fugitivo da fama. A sua decisão de pôr fim ao trabalho que define a sua carreira não foi tomada de ânimo leve, nem a de não a deixar comercializar-se e banalizar-se em merchandising.

“Se me tivesse deixado levar pela popularidade das tiras e me repetisse por mais cinco, dez ou 20 anos, as pessoas que estão agora tristes com Calvin and Hobbes se calhar desejavam a minha morte e amaldiçoavam os jornais por publicarem tiras aborrecidas e antigas como as minhas”, disse Watterson na sua primeira entrevista em mais de 20 anos, dada em 2010 ao Cleveland Plain Dealer, jornal da cidade onde viveria — até a sua morada, como a localização real da Springfield de Os Simpsons, foi durante anos um segredo bem guardado.

“Estou muito orgulhoso pelas tiras, extremamente agradecido pelo seu sucesso e genuinamente lisonjeado que as pessoas ainda as leiam, mas eu escrevi Calvin and Hobbes nos meus trinta [anos] e já estou a milhas disso”, dizia quando tinha 51 anos. Hoje, tem 64 anos e é um “cartunista reformado”.

À pergunta “como é que gostava que as pessoas recordassem aquela criança de seis anos e o seu tigre”, Bill Watterson respondeu: “Eu voto ‘Calvin and Hobbes, oitava maravilha do mundo'”. Em 2013, voltou a dar outra entrevista (escreveram-se livros sobre as tentativas de conseguir uma entrevista com o escorregadio autor), à revista Mental Floss. Ocupava-se com pintura, reflectia sobre a digitalização do mundo e a pulverização dos media e sobre a perda da centralidade dos livros de BD na cultura.

Notícia corrigida às 14h14: a obra foi vendida por 465,3 mil euros e não milhões

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