A biografia possível

Bill Watterson não voltou atrás na decisão de terminar a famosa banda desenhada do miúdo e do seu tigre, e remeteu-se a uma total reclusão. Por Eurico Monchique

William B. Watterson II nasceu a 5 de Julho de 1958, em Washington, D.C, capital dos Estados Unidos.Passou a infância com os pais - Jim e Kathryn - em Chagrin Falls, Ohio.
Licenciou-se em Ciências Políticas, na Kenyon College, em Gambier, Ohio, em 1980. É casado com Melissa e (supõe-se) vive em Hudson, Ohio. Têm um gato. Em 1986 e 1988 venceu o Prémio Reuben para Melhor Cartoonista do Ano. No primeiro destes ano, foi o mais jovem cartoonista (28 anos) a receber este galardão.
"Até logo, papá! Vou espreitar a minha armadilha para tigres!", diz Calvin no primeiro quadradinho da primeira tira de Calvin & Hobbes, a banda desenhada do norte-americano Bill Watterson. Esta primeira aparição do miúdo e do seu inseparável tigre deu-se em 35 jornais norte-americanos a 18 de Novembro de 1985. A última, quase exactamente uma década depois - a 31 de Dezembro de 1995 -, faz hoje dez anos. O seu autor remeteu-se a uma reclusão total, e não mais foi visto em público.
"É um mundo mágico, Hobbes, amigão... Vamos explorá-lo!!!", grita Calvin na derradeira tira, enquanto o par inseparável se lança de trenó na imensidão branca de uma colina coberta de neve. Com esta afirmação, o autor de banda desenhada libertava-se do fardo de uma criação que lhe trouxera tanto êxito popular e reconhecimento crítico quanto ansiedade, depressão, dúvidas e lutas com datas de entrega e agências distribuidoras. E mostrava também que estava à espera de, finalmente, poder dedicar-se, sem pressões exteriores, ao desfrute dos seus outros gostos.
Em finais de 1995, Bill Watterson enviou uma carta ao seu editor, comunicando-lhe a sua decisão de terminar Calvin & Hobbes. Nesta missiva declarava que não se tratava de uma decisão ligeira ou recente, e que lhe causava tristeza, mas também que os seus interesses se haviam alterado e que estava convencido de que fizera tudo o que podia no contexto das horas de fecho diárias e dos pequenos painéis. Na carta, Bill dizia também: "Ainda não tomei uma decisão quanto a projectos futuros, mas a minha relação com a Universal Press [Syndicate, agência de imprensa] manter-se-á."
Foi esta frase que alimentou as esperanças dos admiradores quanto a um eventual retorno de Calvin, o seu tigre e restantes personagens (mesmo que em outro formato, nomeadamente com as personagens mais velhas), ou a inauguração de outra série de cartoons, com outras personagens. Ou mesmo dedicar-se a um dos antigos projectos - Watterson escreveu que gostaria de fazer uma BD a partir de um ponto de vista feminino, nomeadamente do de Susie Derkins, a amiga/némesis de Calvin. Mas tal não sucedeu, e, a julgar pelo silêncio total que tem mantido Watterson, é pouco previsível que isso se venha a alterar. Talvez tenha afinal chegado à conclusão que não poderia avançar mais dentro do universo dos cartoons.
Já antes desta abrupta decisão Bill Watterson se revelara uma personagem fora das normas estabelecidas para as relações com o público e os media. Fotografias suas são raríssimas - as duas que publicámos, de 1986, são repetidas em muitos das obras e sites da Internet que lhe são dedicados. Entrevistas ainda mais raras são. Fontes fidedignas de informação sobre Watterson, então, são basicamente as notas que escreveu para edições especiais dos livros de recolhas das tiras, e dois discursos, um na Ohio State University (Outubro de 1989) e outro no Kenyon College, para os licenciados de 1990.
É neste último que Bill fala das séries que mais o influenciaram enquanto desenhador - Peanuts, de Charles M. Schulz, Pogo, de Walt Kelly, e Krazy Kat, de George Herriman. Do primeiro recebeu os desenhos simples, as crianças intelectuais, os animais pensantes. Do segundo, o gosto pela crítica social e política mordaz. Do último, a poesia. Estes três artistas deram a Watterson, segundo afirma: "As incríveis possibilidades do medium cartoon. (...) Estas tiras reflectem visões pessoais e únicas do mundo, e ficamos mais ricos através da visão do artista." O que se pode também dizer da obra de Watterson.

Greta Garbo dos cartoonistas
Ao longo destes dez anos de silêncio de Watterson, o fascínio de Calvin & Hobbes não diminuiu, e pode mesmo dizer-se que aumentou, à medida que novas gerações entravam em contacto com a criação de Watterson. E o que elas encontram na obra do norte-americano é um mundo fechado (pouco mais do que um miúdo, um tigre de peluche, os pais, uma amiga e uma professora), mas em que todos os aspectos da vida podem ser tocados. Por aqui passam a construção do carácter (nas tiras em que o pai de Calvin o faz trabalhar ou acampar contra vontade, e que são directamente retiradas da relação de Bill com o seu pai, um advogado de patentes), a arte monocromática e transitória (face a um boneco de neve todo branco e a derreter ao sol), ou as implicações morais de atirar uma bola de neve sem saber se o Pai Natal está ou não a ver.
O criador norte-americano pôde tornar-se um eremita artístico devido a não ter que se preocupar mais com questões financeiras ao longo do resto da vida - Calvin & Hobbes continua a ser publicada em dezenas de países, quer em jornais ou em livros. Mas o dinheiro - como se pode ver na caixa ao lado - nunca foi a preocupação fundamental de Watterson. A integridade da sua arte e a sua independência, sim. Foi por isso, aliás, que nunca aceitou trabalhar com assistentes. Foi sempre ele, sozinho, que concebeu, desenhou e coloriu, à mão, todas as pranchas.
Uma situação que lhe causou também grande amargos de boca, não só nos curtíssimos limites temporais para entrega dos trabalhos, como também na busca de inspiração para conseguir entregar uma história todos os dias. Este ritmo acabou por o extenuar, e obrigou-o a tirar duas licenças sabáticas de nove meses cada, o que desagradou aos jornais, pois tiveram que repetir tiras antigas. Mas também aqui o exemplo de Watterson vingou - desde 1994, a Universal Press Syndicate dá quatro semanas de férias aos seus cartoonistas.
A partir de 1996, e escondido dos olhos do mundo, Bill Watterson dedicou-se aos seus gostos, à cabeça dos quais está, claro, a pintura. O pai, Bill, acompanhou o filho na composição de aguarelas, muitas vezes frente ao rio Chagrin, Ohio, onde o artista passou a infância. Mais tarde, já sem a presença do progenitor, Bill passou para as telas a óleo, cuja história estudou a fundo. Trata-se de uma progressão lógica para quem sempre considerou os quadradinhos como uma forma de arte, e que se empenhou em alargar a sua paleta de cores, de formatos, de modos de pintar, de cores, de combinações gráficas e textuais. Depois disso, nada mais se soube.
Os fãs de Calvin & Hobbes continuam órfãos de novidades, mas têm um espólio de dez anos de banda com tanta riqueza visual e textual que permite uma e outra e ainda outra releitura e sempre a descoberta de algo novo. Quanto a Bill Watterson, permanece recluso, qual Greta Garbo dos cartoonistas.

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