They Tattoo: aqui tatuam-se corpos queer para que se tornem “casa”

Elias e Tomi quiseram começar a tatuar-se para se sentirem “em casa” no próprio corpo, antes das hormonas e cirurgias. Agora, no They Tattoo, tatuam outros na esperança de que sintam o mesmo.

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Tomi e Elias no estúdio de tatuagens They Tattoo em Lisboa Nuno Ferreira Santos
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Elias quis "criar um espaço queer", confortável para todos Nuno Ferreira Santos

Às primeiras picadas das quatro agulhas da máquina, Dinis Sousa repetia, talvez para se convencer a si mesmo: “Não dói, nem sinto.” Quase como quando lhe perguntavam sobre o processo de transição de género, a terapia hormonal, as cirurgias. “Foi difícil? Se foi, não precisas de contar. Agora estás melhor, não é? É o que importa”, diziam-lhe as colegas de trabalho. Dinis sorria.

Levanta-se para ver no espelho o resultado final: “D is for dangerous”, lê-se agora no peito, escrito a vermelho. Uma referência à música dos britânicos Arctic Monkeys.

Um pouco mais abaixo, duas cicatrizes deixam memória do dia da mastectomia. Por coincidência, o mesmo dia em que conheceu, no hospital, Tomi, que agora o tatua. Os dois fizeram a cirurgia na mesma altura, com o mesmo médico.

Tomi Ezra, de 24 anos, chegou há poucos meses ao They Tattoo, um estúdio de tatuagens na Baixa de Lisboa, numa esquina da Rua da Prata. Primeiro, para ser tatuado, depois, para aprender a tatuar.

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Tomi fotografa a nova tatuagem de Dinis Sousa. No peito lê-se, a vermelho, "D is for dangerous". Nuno Ferreira Santos

“Ele estava sempre a dizer que queria aprender, e numa dessas vezes convidei-o para aprender aqui”, comenta Elias Lanham, ou El, como é mais conhecido o fundador do They Tattoo.

Já mais experiente, e depois de ter trabalhado noutro espaço, na margem Sul do Tejo, El ficou sozinho no estúdio da Baixa, escondido no 3.º piso de um prédio antigo, sem elevador, onde apenas se entra pelo interior de uma loja de lembranças para turistas. Sabia bem o que fazer dele: “Quis criar um espaço queer, trans, que fosse confortável para pessoas LGBTI+ serem tatuadas, e onde pudesse trabalhar com outros artistas queer.”

Algumas chamadas depois, juntou-se Rosa Franco Moniz, o último terço desta casa. Atrás dela, outros tatuadores foram convidados a ocupar, pontualmente, o estúdio. E, numa sequência “muito natural”, começaram a subir até ao 3.º andar mais corpos queer, prontos para ouvir o zumbido das máquinas de tatuar.

Talvez seja o nome do estúdio — they ("eles"), um dos pronomes que algumas pessoas queer e não-binárias preferem usar, pelo menos na língua inglesa — que o denuncia como espaço inclusivo, ainda que tenha surgido numa piada não relacionada com questões de género. “Hoje faz todo o sentido. É um espaço seguro para todos”, acrescenta El.

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They Tattoo é um estúdio de tatuagens em Lisboa. Nuno Ferreira Santos

“Quando há um estranho a tatuar o teu corpo, a tocar-te e mover-te, é tudo muito íntimo. Vais estar naquele espaço durante algum tempo e queres ter a certeza de que és aceite”, sublinha, num característico sotaque britânico, o tatuador de 28 anos. “Por isso é importante que existam espaços onde nos sentimos seguros, confortáveis connosco mesmos. De outra forma, pode tornar-se uma experiência muito má.”

God is trans

Já com o stencil pronto na pele, Tomi volta a mergulhar as agulhas em tinta, desta vez tinta preta, para tatuar as pernas de Dinis. “São palavras importantes para mim por representarem o meu processo de transição” e, de certa forma, de aceitação, justifica. Acima dos joelhos, já se conseguem ler as expressões: “God is trans” (em português, “Deus é trans") e “Transpower” (em português, “Poder trans").

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Em português: Deus é trans. Nuno Ferreira Santos
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Em português: Poder Trans. Nuno Ferreira Santos

“Traduzi para a minha mãe e para a minha avó o significado das tatuagens”, conta, deitado na marquesa do estúdio. Há dias em que a avó ainda o chama pelo “nome morto” (expressão usada para indicar o nome registado à nascença), ou usa pronomes femininos para se referir a ele, mas “sempre o aceitou”. “É o hábito”, reconhece, ainda que já tenha iniciado o processo formal de transição de género há quatro anos.

Uma das razões que levaram Dinis Sousa a escolher o They Tattoo foi querer apoiar o trabalho de artistas queer e trans. Para os tatuadores El e Tomi, a escolha de um estúdio de tatuagens sempre implicou um “processo de selecção”.

“Esse processo é normal para pessoas LGBTI+, e talvez mais especificamente para pessoas trans, em que se torna óbvio, pelo nosso corpo, que não somos cisgénero [pessoa cuja identidade de género corresponde ao género que lhe foi atribuído à nascença]”, explica El. “Não é algo que consigamos esconder quando tiramos a roupa e temos cicatrizes. Não é só uma questão de conforto, é sobre segurança.”

E nem sempre é preciso chegar ao extremo da violência para uma situação se tornar incómoda. Por vezes, bastam as “perguntas desconfortáveis”, ainda que inocentes. “É bom que queiram aprender, mas não quero ser sempre o educador. É cansativo”, concordam. “Num espaço de pessoas queer, ser trans não é assunto, todos percebem” — mesmo se virem uma cicatriz no peito de um homem ou uma maçã-de-adão no pescoço de uma mulher.

Quando aparência e identidade ainda não coincidiam, antes das cirurgias e da terapia hormonal, as tatuagens eram a única estratégia de Tomi e El para “lidar com o desconforto” trazido pela disforia de género: “Era a forma que tinha de gostar mais do meu corpo.”

El quis começar a tatuar-se “para tomar o controlo do próprio corpo”, para se “sentir mais em casa”, e foi na esperança de fazer outros sentirem o mesmo que aprendeu a tatuar. “Pensei: este corpo é meu, posso mudá-lo para sentir que lhe pertenço. E adoro poder dar isso a outras pessoas.”

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Tomi começou este ano a aprender a tatuar com Elias. Nuno Ferreira Santos

Parou de tocar o álbum dos Arctic Monkeys que ajudou Dinis a esquecer a dor das novas tatuagens. Antes de vestir o casaco e descer até à Praça da Figueira, uma última história, do tempo em que ainda não tinha feito cirurgias mas já usava pronomes masculinos, recorda.

“Fui a uma consulta de medicina no trabalho e avisei a médica que me ia auscultar de que tinha peito, tinha algo que não devia lá estar. Ela viu-me, correu tudo bem, mas depois avisou-me: ‘Não digas a ninguém. Fica entre nós’.” E Dinis nunca disse, com receio de não ser acolhido. Agora, mais visível que nunca, a identidade “está escrita no corpo”.

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