Justiça climática para os nossos pacientes

A crise climática não pode tornar-se uma crise humanitária ainda mais grave. Precisamos de uma verdadeira justiça climática para os nossos pacientes agora mesmo.

Há apenas alguns meses, equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) estavam a dar conta de como na Nigéria, no Níger e no Chade se estava a passar pelas mais graves secas em anos. Entretanto, a situação foi até ao outro extremo: estes mesmos países são agora assolados por cheias intensas. As pessoas mal conseguem recuperar o fôlego entre uma crise e a seguinte.

A maioria dos focos de crise climática são países onde operamos. Muitos deles localizam-se no continente africano, onde a Conferência Mundial do Clima deste ano também está a decorrer. Nos nossos projetos, vemos em primeira mão como as populações são afetadas pelos impactos da crise climática na saúde.

A crise climática é uma ameaça para a saúde humana. Mas nem todas as pessoas são afetadas da mesma forma. Como tantas vezes acontece, as pessoas cujo comportamento menos contribui para a crise climática são as que arcam com o maior fardo das consequências. Pagam-no com a sua saúde e, em alguns casos, com a vida.

É por isso que entendemos ser nosso dever prestar testemunho este ano na Conferência Mundial do Clima (a decorrer em Sharm el-Sheikh, no Egito, de 6 a 18 de novembro) sobre aquilo que observamos nos nossos projetos e advocar junto dos decisores políticos por um maior apoio às pessoas necessitadas.

Uma diferença entre 1,5°C e 2°C, ou mesmo 2,7°C, no aquecimento global até 2030, como foi projetado no ano passado pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente, constitui uma ameaça para a vida de muitas pessoas em todo o mundo.

As secas trazem desnutrição: em 2020, as vagas de calor resultaram em que mais de 98 milhões de pessoas enfrentaram moderada a grave insegurança alimentar. Secas prolongadas, como as que afetam a região do Sahel este ano, levam a que não haja água potável suficiente para as pessoas e para os animais, nem irrigação suficiente dos campos de cultivo, pelo que os solos secam e as colheitas são menores. As provisões alimentares esgotam-se mais cedo no ano, o que pode resultar em desnutrição.

Temperaturas mais quentes trazem mosquitos e doenças: devido às mudanças nas chuvas e ao aumento das temperaturas, o período de contágio da malária, por exemplo, é prolongado. Ou seja, em Moçambique, hoje em dia, em algumas partes do país, há risco de contrair malária durante todo o ano e não apenas durante a época das chuvas.

Destruição pelos eventos climáticos extremos: os ciclones tropicais podem tornar-se mais frequentes e intensos, como aconteceu em Madagáscar no início do ano, quando ocorreram dois ciclones sucessivos. Hospitais foram destruídos e muitos pacientes ficaram temporariamente sem acesso a cuidados de saúde.

A perda de meios de subsistência força as pessoas a fugir: por vezes, as populações não têm outra escolha que não a de fugir, como acontece no Sul da Somália, onde muitas pessoas se viram forçadas a partir das suas casas devido a secas e a conflito prolongado.

Especialmente para quem vive em contextos de pobreza e de conflito, para pessoas sem proteção social e para pessoas a quem falta ou que são excluídas do acesso a cuidados essenciais de saúde – por outras palavras, para os nossos pacientes –, há algo que pode ser feito capaz de mudar vidas.

Cada fração do aquecimento global que se evitar reduz a morte e o sofrimento nos contextos humanitários em que trabalhamos.

Nós estamos já a testemunhar as perdas e os danos, e é precisa uma ação imediata de quem é responsável.

A ação climática, ou seja, a mitigação das emissões de gases com efeito de estufa, devia ter sido encetada há já muito tempo. As perdas e os danos que disso resultaram são irreversíveis em alguns locais. As consequências são já uma realidade: muitas vidas humanas, infrestruturas de saúde, casas, escolas, áreas agrícolas, lugares culturais e espirituais foram destruídos.

Nestas regiões, já não se trata somente de parar as alterações climáticas. Em todos os locais onde o possamos fazer, temos de atenuar as consequências para as populações e para a sua saúde, nomeadamente através de medidas simples de adaptação como a construção de barragens ou a limpeza das fontes de água.

Mas, se é tarde demais para o fazer, temos de pagar pela reconstrução depois da destruição. E são sobretudo os países que mais contribuem para a crise climática, por exemplo os países do G7, que devem ser responsabilizados.

As necessidades humanitárias vão aumentar para além daquilo que a Médicos Sem Fronteiras e outras entidades humanitárias podem dar resposta. São necessárias uma ação climática ambiciosa, medidas de adaptação sustentáveis e apoio concreto e abrangente para lidar com os danos e as perdas.

Exigimos aos representantes políticos na Conferência Mundial do Clima, que estão a tomar decisões em Sharm el-Sheikh que vão afetar a saúde de milhões de pessoas, um suficiente apoio financeiro e técnico para fazer face aos danos e perdas, especialmente para os países e pessoas mais afetadas – e isto não deve envolver o uso de fundos de ajuda humanitária. Exigimos também compromissos mais ambiciosos e vinculativos por parte dos Estados, das empresas e dos setores que são principalmente responsáveis pelas emissões históricas, atuais e futuras, de forma a manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C.

A crise climática não pode tornar-se uma crise humanitária ainda mais grave. Precisamos de uma verdadeira justiça climática para os nossos pacientes agora mesmo.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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