Residência farmacêutica: e agora?

Se a residência farmacêutica está baseada no modelo do internato médico, a profissão tem que perceber as consequências que tal implica, mesmo em aspectos sensíveis.

1. Começo por uma provocação saudável. Saíram as vagas para o internato médico. Vários agentes políticos se referiram a elas. Todos os hospitais as publicitaram. Nem o primeiro, até onde me é dado saber, divulgou as da residência farmacêutica. Podemos resumir isto, de forma simplista, a um problema político. Mas não me parece que a resposta seja essa: é um problema, e sério, de comunicação e posicionamento da profissão farmacêutica, junto dos órgãos de gestão em saúde e das comunidades. Como se pode resolver isto?

2. Falemos das escolas farmacêuticas e da sua resistência em assumir o papel de formadores da profissão, ao invés de serem fábricas de graduados em Ciências Farmacêuticas. Esta dificuldade resulta, em boa parte, do facto de um número muito significativo de professores não estar envolvido na prática assistencial. Qual o reflexo concreto na residência farmacêutica? A falta de abertura para adaptar o calendário lectivo do último ano de curso para que os recém-formados estivessem disponíveis para concorrer à Prova de Ingresso na Residência Farmacêutica (PIRF), cenário que nem sequer foi previsto.

Afirmar que quem quer ir para a residência farmacêutica pode esperar quase um ano é, diria, uma evasão da realidade. Não basta dizer que a academia quer ajudar a melhorar a prática profissional, quando nem permite que os seus finalistas acedam em tempo útil a percursos profissionais que pretendem seguir. Um indicador que deveria ser alvo de reflexão: menos de 10% dos candidatos à PIRF eram recém-licenciados. O que tem o Conselho de Escolas Farmacêuticas, recentemente criado, a dizer sobre isto?

3. Outra consequência do ponto anterior é o imperativo de acabar com a disparidade existente nos estágios curriculares. O argumentário de que são unidades curriculares apenas dependentes das faculdades, e que estas têm autonomia não justifica tudo. Se a profissão é auto-regulada, tem determinadas exigências deontológicas, e o próprio ensino é, até ver, condicionado por directiva europeia, rapidamente se conclui que esta autonomia é relativa. Está na hora de construir um “semestre comum” para o Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas, renunciando a inércias organizacionais.

4. Olhemos agora para a PIRF: quantos recém-licenciados se considerariam aptos, sem estudo dirigido, a resolver correctamente 50% de uma prova que, de forma pertinente, possui uma componente significativa de perguntas sobre a prática assistencial farmacêutica? A academia, posta perante aquilo que a profissão espera que seja o perfil de conhecimentos e competências de um farmacêutico recém-graduado, não se interroga sobre a qualidade do seu ensino? Sobre a necessidade de reforçar a sua componente clínica? Claro que a PIRF não é perfeita, e que há aspectos que carecem de melhoria (a começar pela revisão do modelo de bibliografia apresentado). Mas isto não invalida a reflexão necessária sobre este tema.

5. Ainda outro ponto: se a residência farmacêutica está baseada no modelo do internato médico, a profissão tem que perceber as consequências que tal implica, mesmo em aspectos sensíveis (tocando alguns na revisão das associações públicas profissionais). É o momento de deixar de defender o que passa a ser indefensável, como a duplicidade de vias de especialização, sem prejuízo de terem que se resolver as situações transitórias (que não podem passar a definitivas) em tempo útil, o que exige trabalho político junto do Governo. Infelizmente, nesse campo, não tem havido abertura para as resolver. É politicamente legítimo que não se considere esta questão uma prioridade, mas as consequências surgirão. E terão de ser assumidas.

6. Para terminar, algumas perguntas, num momento em que já temos uma ordenação (ainda que provisória) dos candidatos da PIRF, que brevemente irão manifestar as suas preferências de concurso. Tendo em consideração que a maior parte dos candidatos já estão em pleno exercício profissional, com compromissos pessoais e familiares assumidos, arriscamos uma elevada taxa de recusa de vagas? Qual a necessidade de rever o enquadramento salarial para os farmacêuticos residentes, considerado pouco atractivo? Estão os órgãos de gestão de hospitais e laboratórios públicos sensibilizados para a necessidade da nomeação de directores e orientadores de residência farmacêutica nas diferentes áreas de especialização?

Qual a disponibilidade dos colégios de especialidade prontos assumir novos papéis, como emanar orientações na área (algo como um “manual do residente”, que já deveria estar pronto e discutido pela profissão) e zelar pela manutenção e obtenção de novas idoneidades formativas? Estão os futuros residentes farmacêuticos prontos para se organizarem institucionalmente? Qual a receptividade das instituições para a recepção aos farmacêuticos residentes no dia 2 de janeiro, tal como acontece com os médicos internos; e para acolher outras iniciativas, como dias abertos para farmacêuticos candidatos à PIRF? Estão as escolas farmacêuticas dispostas a dar o passo de se integrarem activamente na dinâmica de acesso à residência farmacêutica, implicando um maior peso do ensino clínico e a sua reorganização interna?

Da resposta que for dada a estas questões depende uma parte significativa do êxito (ou insucesso) da residência farmacêutica, e da sua continuidade ao longo do tempo.

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