Uma “lei de Bianca”?

Não será aconselhável legislar no sentido de que quem transmite e produz filmes, brinquedos e publicidade, sobretudo direcionados a jovens, represente todo o tipo de corpos?

A Disney apresentou ao Mundo “Bianca”, uma nova personagem animada, que protagoniza a curta-metragem Reflect, enquanto jovem bailarina que se debate com o seu aspeto ante a indicação da sua professora: “Tight tummy, long neck”.

Nasci no fim dos anos 80. No meu círculo de amigas existem, pelo menos, quatro mulheres que sofreram e continuam a batalhar com distúrbios alimentares graves. No contexto alargado das “pessoas conhecidas”, são notórias várias relações turbulentas com a comida e com o aspeto físico. Diria que se tivesse outro biótipo corporal, também enfrentaria uma doença do mesmo cariz.

A OMS divulga num relatório sobre saúde mental publicado este ano que os distúrbios alimentares ocorrem maioritariamente entre jovens do sexo feminino. Diz-nos a National Association of Anorexia Nervosa and Associated Disorders que os transtornos alimentares afetam 9% da população mundial e que estas são as doenças do foro psiquiátrico que mais matam a seguir à toxicodependência.

Em Portugal, entre 2000 e 2014, os distúrbios alimentares, como a anorexia nervosa e a bulimia, motivaram 4485 hospitalizações, de acordo com uma investigação do Cintesis.

Tendo constatado as severas e duradouras consequências destes transtornos para a autoestima e bem-estar físico e psicológico de quem deles sofre, venho-me perguntando se o resultado de, desde crianças, nos fornecerem “ídolas” de aparência sobre-humana, pela qual são quase exclusivamente admiradas, poderia ter outro resultado. Parece natural que, na constante busca pela integração social, particularmente intensa na adolescência, soframos com a disparidade entre o nosso aspeto e o das “modelos” que nos apresentam em todas as idades. As bonecas, as princesas como protagonistas principais de contos e filmes animados, as cantoras e atrizes eram, sem exceção, magras. Preparadas para sermos excelentes em todos os aspetos da vida, desejamos linhas corporais incólumes e não sendo estas atingíveis, facilmente o tão poderoso cérebro torna tais linhas ainda mais longínquas e deforma o reflexo que é devolvido pelo espelho.

A comunidade científica vem associando a envolvente sociocultural à proliferação destas doenças, particularmente nas sociedades ocidentais. Mas tem havido mudanças: já há Barbies de vários tamanhos, marcas que fazem publicidade aos seus produtos recorrendo a modelos representativas da variedade física existente e algumas figuras públicas insurgem-se quanto à imposição de manter um determinado tipo de corpo. Porém, continuamos a falar de casos excecionais. Como é que só agora há uma “Bianca”, que ainda assim não é protagonista dos tradicionais filmes, mas de uma curta-metragem? Como é que na dança e no desporto se continua a exigir a crianças pequenas a magreza extrema para atingir o sucesso na prática da atividade?

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Bianca é a primeira heroína "plus size" da Disney DR

Afaste-se, desde já, a eventual crítica de que negligencio a relevância a atribuir ao exercício físico e a uma alimentação equilibrada. Estes constituem hábitos a incutir, revestindo-se tal missão de enorme importância, devendo surgir coligada àquela de que aqui trato: a busca pela saúde mental e física e não por uma aparência delgada ou irrealista.

Iniciado o caminho para reverter o estado das coisas, mas sendo lento o seu progresso, parece essencial a atuação dos Estados para revestir de maior eficácia o combate à pressão desmesurada sobre tantas crianças e jovens que as deprime, priva de comida, de energia, lhes torna incontrolável comer em excesso, forçar o vómito ou exercitar-se até à exaustão.

A Constituição prevê os direitos à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à saúde, assim como consagra a liberdade de expressão, informação e de criação cultural, que poderão conflituar na tentativa de se aumentar o espectro de “imagens” representadas nos meios de comunicação social, podendo as últimas ter de ser comprimidas para salvaguarda dos primeiros.

A Lei da Televisão fixa como um dos fins da atividade televisiva “contribuir para assegurar os princípios da tolerância, da solidariedade, da não discriminação e da coesão social” e como limite à liberdade de programação, nomeadamente o respeito pelos direitos específicos das crianças e jovens.

Noutro setor, não faria sentido que os requisitos relativos à segurança dos brinquedos, estabelecidos pela União Europeia e transpostos para a lei nacional, espelhassem não só o cuidado com a integridade física de quem os utiliza, mas também com a sua saúde mental? A verdade é que a Diretiva de 2009 sobre esta matéria e o decreto-lei que a transpôs, fixam, amplamente, que “os brinquedos (…) não podem pôr em perigo a segurança ou a saúde dos utilizadores ou de terceiros (…)”, como requisito geral de segurança, de modo a garantir que, ao seu abrigo, se possa tomar medidas em relação a brinquedos que apresentem riscos não cobertos por uma das exigências específicas previstas.

O Código da Publicidade restringe a atividade para proteção da saúde e segurança do consumidor, principalmente do menor, quanto a produtos como o tabaco e a pornografia.

Portugal é um dos Estados-membros da OMS, que adotaram o Comprehensive mental health action plan 2013–2030, comprometendo-se a atingir diversas metas relacionadas com este tópico, não tendo, porém, evoluído em conformidade. Assim, esta organização apela a que a abordagem à saúde mental não permaneça “business as usual”.

Neste contexto, não será aconselhável legislar no sentido de entidades públicas e privadas que, nomeadamente, transmitam e produzam filmes, brinquedos e publicidade, particularmente direcionados a crianças e jovens, deverem recorrer a figuras que exemplifiquem e destaquem todos os tipos de corpos? Estando a escrever sobre esta específica representatividade, aproveito para apontar a premência de incluir em tal necessária diversidade outras características tradicionalmente excluídas relacionadas com raça, etnia, religião, identidade de género e orientação sexual.

Diria que o impacto de crescer familiarizado com a diferença poderia conduzir não só a uma melhor aceitação pessoal, como do outro, fazendo frente a diversos problemas graves como o bullying e atitudes ou crimes discriminatórios.

Deixo, assim, face a esta breve abordagem, o desafio aos profissionais das mais variadas áreas, sejam o Direito, a Saúde, a Gestão ou a Comunicação, de pensarem sobre estas possibilidades e de se questionarem: uma “lei de Bianca” e sua aplicação prática não seriam benéficas para todos e cada um de nós e dos nossos?

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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