Crónica de uma médica privilegiada

Não percebo onde é que o Estado coloca o dinheiro que absorve do meu trabalho, do trabalho de todos nós e acho que não sou a única.

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Hospital ADRIANO MIRANDA

O título foi escolhido a dedo para descartar imediatamente a hipótese de que eu não saiba desde que posição estou a escrever. Sou uma privilegiada, é certo, mas também sei quanto custa um litro de leite, antes e depois da inflação, e ninguém me apanhará a dizer que um jovem altamente qualificado recebe em Portugal, como primeiro salário, mais do dobro do salário médio.

Sou médica. Há quase três anos, mas o primeiro foi o da pandemia e creio que isso me dá pontos extra. Estou no início da especialidade e adoro o que faço com um entusiasmo que faz os meus amigos apostarem se vou ter um esgotamento antes ou depois dos 30. Garanto-lhes que vão todos perder.

O meu salário é do conhecimento público; está tabelado legalmente. No ano passado, ganhei bastante dinheiro extra porque, enquanto interna do primeiro ano, estava a estagiar na Medicina Interna e havia buracos que eu alegremente tapava tanto no internamento como na urgência.

Este ano já estou na minha área, portanto, adeus, Urgência Geral, compreensivelmente. Estou a aprender coisas que levam anos a serem bem feitas, preciso de ver doentes como aqueles que terei de tratar o resto da vida e isso fica difícil se duas vezes por semana estiver fora do serviço, a babar-me no sofá depois de uma noite de banco. Agora sim, se quiserem, podem procurar a tabela no Google e verem, ao cêntimo, quanto é que eu ganho. Ou ganharia, se deixasse.

Todos os meses faço as contas das despesas do mês seguinte. Que não são propriamente compras da Zara. É a inspecção do carro, a quota da Ordem dos Médicos, a poupança para o PPR (que já sei que a maioria das pessoas não se pode dar ao luxo de ter), o seguro de saúde (a mesma coisa), a prestação da casa (que comprei com ajuda maternal, obviamente). Já acabei a pós-graduação que consegui pagar por milagre (e também sei que há quem nem possa sonhar com a faculdade). Este ano ainda não consegui pagar a porcaria do curso de ecografia. Talvez no ano que vem.

O que interessa é que calculo a diferença entre aquilo que ganho e aquilo que custa a vida que gostava de ter. E depois vejo a escala de bancos do hospital — também público — onde sou tarefeira e programo o trabalho que ainda tenho de fazer para que essa diferença se feche.

Há muitas coisas a dizer sobre isto. Primeira, que os abusos de alguns colegas no passado (aquela coisa clássica tão triste de ter horário no público e no privado ao mesmo tempo) fizeram com que haja limite legal ao número de horas que posso trabalhar por fora, por semana.

Consigo entender isso. Em parte. Por outro lado, pico o ponto com impressão digital em ambos os hospitais, são ambos hospitais públicos, é mais do que fácil fiscalizar-me e comprovar que, por enquanto, ainda não consigo ter os dois indicadores a 25 quilómetros de distância um do outro. Afinal de contas, o Estado é que perde quando me deixa no banco — ou no sofá da minha salinha — quando há urgências cujas equipas têm mais buracos do que médicos.

Por outro lado, vou ser sincera. Na maioria dos meses, acabo por abdicar de imensas coisas. Coisas não essenciais. Luxos no contexto português, claro que sim. Mas coisas que os meus pais, com a minha idade ou o meu grau de diferenciação profissional podiam fazer. Ainda sou filha da geração cujos pais prometeram que estudar e ser preserante eram garantias de um futuro próspero. E deve dizer-nos alguma coisa quando a geração actual tem menos poder de compra que a antecedeu (e na qual a maioria nunca recebeu a educação que mais tarde se desunhou para poder oferecer aos filhos).

Parecendo que não, não escrevo estas linhas a pensar só em mim. Como digo, sei quanto custa um litro de leite. E sei quanto ganham os auxiliares de acção médica que fazem a higiene dos meus doentes. O que eu não sei é como é que comem, como se vestem, como criam os seus filhos.

Acho o sistema fiscal uma coisa ideologicamente bonita. É claro que me custa pensar que a cada 4 horas de trabalho, uma cai directamente nas mãos do Estado, sob a forma de retenção na fonte, mas acho que conseguiria compreendê-lo se os salários mais baixos da esfera pública garantissem a sobrevivência básica ou se toda a gente tivesse médicos de família cujo trabalho indispensável evita cerca de 50% dos episódios de urgência hospitalar.

Mas não vejo nada. Não percebo onde é que o Estado coloca o dinheiro que absorve do meu trabalho, do trabalho de todos nós e acho que não sou a única. Penso que é nesta realidade que radica grande parte da descrença colectiva da minha geração no sistema político.

Quanto a mim, vou continuar a trabalhar. Acho que conseguir prosperar neste contexto acaba por ser o único exercício de rebeldia que está nas minhas mãos, além do meu voto. Vou continuar a esforçar-me para dar aos meus filhos uma vida tão boa — e se puder, melhor — do que aquela que me foi oferecida. Mas a cada turno extra, não deixo de pensar em quem não os pode fazer. Em quem não se pode dar ao luxo de pegar no telefone e trabalhar o que lhe falta para chegar ao fim do mês. Em quem, trabalhe o que trabalhar, termina sempre o dia exausto... e sem sentir que esteja a chegar a lado nenhum.

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