Gostam de cães, mas não conseguem estar perto deles. Há quem ajude a perder o medo

Passar por episódios traumáticos ou nunca ter tocado num cão são algumas das razões que provocam cinofobia. A associação Eu Cãosigo ajuda a combater o medo, através da interacção com estes animais.

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Uma das formas de superar o medo de cães é conviver com eles Pauline Loroy/Unsplash

Sofia Freitas adorava ter um cão, mas o medo impede-a sequer de se aproximar deles, quer sejam adultos ou idosos. Sofre de cinofobia, doença conhecida como medo irracional de cães, e apesar de já ter procurado fazer terapia e de, nos dias de hoje, se sentir “mais confortável”, o pânico está longe de desaparecer.

“A cinofobia é muito chata e muito difícil de ultrapassar. Sinto melhorias, mas ainda continuo a ter um grande bloqueio”, começa por contar ao P3. O medo começou em criança, quando ainda estava a aprender a andar e viu um pastor-alemão a aproximar-se e a ladrar, porque tinha visto outro cão. “Isto foi o que os meus familiares me contaram. Dizem que eu comecei a correr, a fugir”, afirma a engenheira de 38 anos.

A partir desse momento, o trauma ficou e, com o passar dos anos, o medo foi aumentando ao ponto de, durante a infância, chegar a subir para cima de mesas sempre que um cão aparecia. Há dois anos, escondeu-se na área restrita de uma mercearia, episódio que ainda recorda com incredulidade. “Fui para um sítio que era privado. Ninguém faz isto. Eu nem pensei, vi o cão e fui esconder-me.”

As situações de pânico provocadas pela presença de um cão foram-se repetindo ao longo dos anos, mas em 2020 decidiu (tentar) pôr-lhes um ponto final. Inscreveu-se nas sessões de terapia da Eu Cãosigo, associação sem fins lucrativos da Amadora que ajuda pessoas a combaterem o medo destes animais. Agora, desde o ano passado que Sofia já consegue estar perto de um cão que esteja calmo e até fazer-lhe festas. Com gatos sempre conseguiu lidar.

O psicólogo João Areias explica que o medo nem sempre está associado a episódios que a pessoa ou alguém que lhe é próximo viveu. Quando estas situações ocorrem, estamos perante um trauma; se nunca tiverem acontecido, trata-se de fobia. “No fundo, é um medo desproporcional à verdadeira ameaça que o animal representa ou a forma como a pessoa percepciona o animal”, resume. Nesse último caso, a pessoa pode ter consciência de que o medo é irracional ou não.

Da mesma forma, “muitas das vezes a origem do trauma nem sequer está relacionada com um cão”, explica Margarida Fonseca, responsável pela administração da Eu Cãosigo. “Temos situações de pessoas que fogem, se aparecer um cão solto no jardim, mesmo que estejam lá os filhos a brincar”, conta.

Por outro lado, também há casos de pessoas que nunca tocaram num animal, situação que, na grande maioria das vezes, desencadeia o medo. Há quem nunca o tenha feito, porque não gosta de sentir animais, outras “porque não calhou”, explica Margarida.

É o caso de Luísa Mandim. Em criança, tocar num animal já lhe causava alguma confusão, mas a situação piorava com os cães. Ao mesmo tempo, o facto de viver num apartamento e de os familiares mais próximos não terem animais de estimação fez crescer o medo. Recorda-se em particular de uma situação que viveu quando tinha três anos: “A minha tia recebeu um cão no Natal para eu perder o medo, mas não correu bem. Era um boxer muito pequeno e lembro-me de ela dizer para lhe fazer uma festa. Recordo-me de dizer: ‘Ele abre e fecha a boca, não quero.’” Hoje, 25 anos depois, muda de passeio sempre que vê um cão.

Na Eu Cãosigo, um dos primeiros exercícios para superar o medo começa pelo toque. A fase seguinte é estar perto do animal e levá-lo a passear pela trela. É como se fosse um jogo, explica Margarida, o nível de dificuldade com os cães vai aumentando com o passar das sessões e “sem que a pessoa sinta que tem que sair dali”. Primeiro, começam com os dois cães mais calmos e depois passam para os outros dois mais enérgicos.

A primeira sessão na Eu Cãosigo começa com os cães mais calmos Eu Cãosigo
Em cada exercício, as pessoas fazem festas e aproximam-se dos cães Eu Cãosigo
Numa fase mais avançada levam os cães a passear Eu Cãosigo
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A primeira sessão na Eu Cãosigo começa com os cães mais calmos Eu Cãosigo

O psicólogo (que também tem três cães) acredita nesta exposição gradual, mas destaca que deve existir uma segunda pessoa no mesmo espaço para ser mais seguro. “Numa primeira etapa, poderíamos ter a pessoa dentro da casa a olhar para o cão que está no jardim. Depois poderíamos pôr o cão e a pessoa na mesma divisão, mas longe”, sugere, acrescentando que também é necessário que a pessoa perceba que o cão com que está não é o que provocou a fobia.

Regressando a Luísa, que nunca procurou ajuda para combater o medo, a par dos comportamentos imprevisíveis dos cães, o farejar destes animais é o que mais a incomoda. “Não sei se faz sentido ou não, mas não é tanto o receio que eles me mordam, porque eu nunca fui ferrada. Já o facto de eles me estarem a cheirar cria-me um medo terrível. Não consigo explicar, não sei explicar”, confessa.

Ter um cão resolve o problema?

Contudo, Luísa acredita que a melhor solução para quem tem medo de cães é arranjar um. “Cria-se uma relação e vais perdendo o medo àquele animal. Talvez consigas perceber que ele cheirar é sinal que quer brincar”, argumenta.

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O farejar dos cães é o que mais incomoda Luísa Mandim Luísa Mandim

À primeira vista, pode até parecer boa ideia, mas, à luz da sua experiência na EuCãosigo, Margarida sugere que se pense novamente. “Se a pessoa não tem medo do seu cão, mas tem medo dos outros todos e foge, como é que vai fazer, quando for a um parque com o seu cão? E se não houver mais ninguém para o levar à rua?”, questiona.

Se a pessoa quiser mesmo ter um cão, o primeiro passo passa por fazer a convivência lenta sugerida pelo psicólogo João Areias. Além disso, ver fotografias e vídeos de cães para observar comportamentos ou vê-los ao longe, na rua, também ajuda.

“A pessoa consegue perceber se o cão está com interesse nela, como é que se movimenta, como é que está a reagir e, portanto, já consegue fazer uma gestão das próprias emoções e perceber que, se está numa situação que é desagradável, deve tentar geri-la para não entrar em pânico e fuga”, salienta.

João Areias acrescenta ainda que o medo pode ser controlado, mas ressalva que não há prazo para que tal aconteça. Segundo Margarida, em crianças até aos dez anos, o problema pode desaparecer “em duas ou três sessões”. Com os adultos varia.

Com o passar do tempo, “nem todos vão querer abraçar cães na rua, mas têm essa liberdade de poderem sair sem estarem preocupadas”, conclui.

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