O impacto das autoestradas na organização do território e desenvolvimento sustentável em Portugal

A construção da rede de autoestradas contribuiu para concentrar população e atividade económica no litoral e também para intensificar o fenómeno de suburbanização nas grandes áreas metropolitanas.

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As auto-estradas promovem a mobilidade geográfica da mão-de-obra paulo pimenta

O modo como a população se distribui no território português mudou muito nas últimas décadas. Entre 1981 e 2011, a população residente do continente passou de 9,3 milhões de residentes para cerca de 10 milhões. É um crescimento de 7,6% que, naturalmente, nada nos diz sobre as enormes diferenças existentes à escala local. Na verdade, 98 municípios perderam mais de 20% da sua população neste período. Em traços gerais, a população aumentou na faixa entre Viana do Castelo e Setúbal e no Algarve, tendo diminuído no resto do país (esse imenso “interior”…).

Diminuiu, também, em Lisboa e no Porto, que perderam 260 mil e 90 mil residentes, respetivamente. Já a população dos restantes municípios das áreas metropolitanas de Lisboa (AML) e do Porto (AMP) aumentou de forma expressiva: mais 600 mil na AML e 333 mil na AMP. Sintra, por exemplo, passou de 226 mil habitantes em 1981 para 378 mil em 2011.

Tudo isto se refletiu na artificialização dos solos. Não raro ouvimos de alguém mais velho: “Aqui, antes, só havia campos, agora é só prédios”. De facto, recorrendo aos dados cartográficos do inventário europeu CORINE Land Cover (obtidos a partir de imagens de satélite), estimámos que a área considerada urbana tenha aumentado em 55,9% entre 1990 e 2012, passando de 2,92% para 4,55% da área total do continente. Ou seja: um crescimento de 1454 km2 em pouco mais de duas décadas ou, se se preferir, o equivalente a quase 7 mil campos de futebol de nova área urbana a cada ano.

Só na AML este crescimento foi de 199 km2, o que equivale a mais do dobro da área da cidade de Lisboa. Os dados que analisámos confirmam que grande parte desta artificialização dos solos ocorreu de forma fragmentada e pouco planeada. O edificado foi-se espalhando um pouco por todo o lado, levando muitas vezes à construção de zonas residenciais mais ou menos dispersas.

Neste mesmo período, Portugal fazia um enorme investimento na modernização da sua rede rodoviária, e, nomeadamente, na construção de uma vasta rede de autoestradas. O senso comum sugere-nos, desde logo, que as autoestradas devem ter tido alguma influência nas dinâmicas que acima descrevemos. Os resultados a que chegámos na investigação que temos desenvolvido sugerem que a construção da rede de autoestradas contribuiu não só para concentrar população e atividade económica no litoral do país, mas também para intensificar o fenómeno de suburbanização nas grandes áreas metropolitanas e ampliar as dinâmicas de expansão urbana dispersa na generalidade do território.

Terá tido um efeito significativo, igualmente, no número de pessoas a trabalhar fora do município de residência, o que significa que as autoestradas contribuíram, como seria de esperar, para o aumento da mobilidade geográfica da força de trabalho.

Estes elementos devem fazer-nos refletir. O crescimento de grandes áreas suburbanas extensivas e pouco densas gera um grande número de movimentos pendulares fortemente dependentes do automóvel particular. Veja-se o caso de Lisboa. Em 2011, a cidade tinha 548 mil residentes (em 2021 seriam 546 mil, segundo os Resultados Provisórios dos Censos). No entanto, entravam diariamente na capital mais 426 mil pessoas para trabalhar ou estudar, sendo que, em 2018, de acordo com dados da câmara municipal, entrariam em Lisboa cerca de 370 mil veículos por dia. Isto representa custos elevados, quer em termos de emissões de CO2 e outros gases poluentes, quer em tempo perdido em filas de trânsito…

Na realidade, a expansão urbana fragmentada e descontínua envolve um leque alargado de custos socioecónomicos, os quais contribuem para dificultar a concretização de um desenvolvimento que seja efetivamente sustentável e equitativo. Por exemplo, é mais dispendioso infraestruturar áreas dispersas e dotá-las de serviços públicos do que fazê-lo em áreas mais compactas; isto, por sua vez, gera pressão sobre os orçamentos das câmaras municipais. O desenvolvimento de redes de transporte público economicamente viáveis também se torna mais difícil, assim como a própria inserção das pessoas no mercado de trabalho. Haverá, mesmo, custos em termos da saúde geral da população, até porque em áreas com estas características as pessoas tendem a andar menos a pé ou de bicicleta no dia-a-dia.

A economia portuguesa é caracterizada por ineficiências estruturais de vária ordem, e a forma como o país (não) organizou o seu território não é exceção. A nossa investigação sugere que para a situação presente concorreram efeitos, não antecipados ou não devidamente valorizados, da construção da rede de autoestradas (note-se, porém, que não estamos em momento algum a fazer uma avaliação geral dos benefícios e dos custos do investimento que o país fez nesta infraestrutura – tal exercício seria excessivamente ambicioso –, mas antes a trazer para a discussão um conjunto específico de impactos).

Deve-se referir que é muito provável que as autoestradas não tivessem produzido esses efeitos se o contexto geral não fosse propício a isso. Sabemos que os Planos Diretores Municipais de primeira geração foram demasiado permissivos no que à construção urbana diz respeito, e que as câmaras municipais tinham, à época, poucos recursos humanos especializados em ordenamento do território. A isto junta-se um longo congelamento de rendas, que bloqueou o desenvolvimento de um mercado de arrendamento dinâmico nas grandes cidades, e, igualmente, a existência de incentivos ao crédito bancário para aquisição de casa, que estimularam o mercado da construção.

A economia portuguesa encontra-se hoje num momento histórico complexo. O crescimento da produtividade é baixo há muitos anos. A emigração é elevada. Na UE, o PIB per capita de quase todos os países da Europa do Leste tem crescido mais rapidamente do que o de Portugal. Superar este atraso implica, necessariamente, obter ganhos de eficiência no uso dos recursos disponíveis. Ora, o território não pode ser excluído desta equação, devendo ser entendido como um recurso absolutamente central e, assim, gerido de forma inteligente e sustentável.

Estando o país a lançar um ciclo de investimentos importantes (por exemplo na ferrovia), ter-se-á de evoluir, cada vez mais, no sentido de melhorar a articulação de políticas e conhecimento entre áreas setoriais diferentes: transportes, ordenamento do território, ambiente e energia, saúde pública, etc.

O exemplo das autoestradas deve permanecer como um lembrete poderoso do tipo de custos socioeconómicos que a nossa sociedade poderá ter de suportar se descurar as complementaridades entre políticas públicas e os grandes investimentos em infra-estruturas.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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