O elogio da normalidade - a vitória de Lula da Silva e a (re)união do Brasil

Ouvir as palavras de unificação e de despolarização do novo Presidente foram um bálsamo face à retórica desagregadora e maniqueísta de Bolsonaro.

Não foi por falta de aviso ao longo dos últimos quatro anos. Os alertas deixados antes e após as eleições de 2018 demonstravam reiteradamente o perigo que representava a vitória de Jair Bolsonaro para o normal funcionamento das instituições brasileiras e da sua democracia. Os sinais de perigo estavam lá ainda antes da vitória do atual ex-Presidente: e os episódios da véspera e do dia das eleições – com uma deputada federal do Partido Liberal, de Bolsonaro, a ameaçar apoiantes de Lula de arma na mão e a atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF), liderada por um apoiante confesso do Presidente, que através de ações de fiscalidade terá tentado bloquear o acesso de milhões de eleitores às urnas nos estados do Nordeste, maioritariamente favoráveis a Lula – não surpreenderam ninguém.

Independentemente da tristeza e amargura que nos provoca todo este processo eleitoral, a verdade é que a vitória de Lula da Silva abre, pelo menos, uma porta de esperança na retoma da normalidade. Concluído este processo eleitoral, e no pressuposto que a transição se fará de dentro dos parâmetros democráticos, o que fica desta eleição é que o Brasil terá, sem qualquer dúvida, uma inversão de políticas.

O combate à pobreza e à fome serão a prioridade principal de Lula da Silva. De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “Este número em 2021 [de pessoas com renda domiciliar per capita até 497 reais [menos de 95 euros mensais] corresponde 9,6 milhões a mais que 2019, quase um Portugal de novos pobres surgidos ao longo da pandemia. Desde o começo da série histórica, em 2012, a pobreza nunca esteve tão alta no Brasil quanto em 2021”. Um país com a dimensão continental do Brasil não pode continuar o caminho de agravamento das desigualdades e Lula, pelo legado que tem, terá as capacidades ideais para voltar a implementar políticas públicas que favoreçam a redistribuição, a melhoria dos rendimentos dos brasileiros e a eliminação da fome no país.

O segundo ponto principal neste início de (terceiro) mandato de Lula será o restabelecimento da normalidade no funcionamento das instituições democráticas brasileiras, tal como consagrado na Constituição brasileira. A crise democrática será um desafio maior nesta legislatura, não só pelos resultados muito positivos obtidos pelos apoiantes de Bolsonaro ao nível de governadores, deputados federais e senadores – o que dificultará o diálogo interinstitucional – mas também pelo poder que o agora ex-Presidente conferiu às forças policiais e militares, e pelo surgimento de forças milicianas que beneficiaram das leis de armas introduzidas na última legislatura. Não obstante, o novo Presidente eleito foi muito claro no seu discurso de vitória e ouvir as suas palavras de unificação e de despolarização foram um bálsamo face à retórica desagregadora e maniqueísta de Bolsonaro.

Por último, e do ponto de vista das relações externas, o regresso de Lula dá sinais muito positivos em matérias absolutamente determinantes. A inversão das políticas de desmatamento da Amazónia e de proteção dos povos indígenas são o sinal mais positivo para o mundo, dada a absoluta necessidade de preservar a floresta amazónica. Os dois sinais mais importantes nesse sentido são o do regresso do Brasil à COP27 e a intenção de assinar um acordo para impedir a compra de soja de áreas desmatadas do Cerrado brasileiro a partir de janeiro de 2025. E no refortalecimento das relações internacionais, Lula deixou claro no seu programa a intenção de reconstruir a cooperação internacional Sul-Sul 18 com a América Latina e África, bem como de fortalecer novamente o Mercosul, a Unasul, a Celac e a participação do Brasil nas organizações multilaterais. Isto será determinante para relançar a discussão do acordo comercial entre a UE e o Mercosul, melhorando a interligação entre os dois lados do Atlântico e estimulando a cooperação dos dois blocos através do diálogo institucional e comercial.

Os desafios que Lula enfrenta são de extrema dificuldade – ainda para mais num contexto internacional delicado, com uma situação económica frágil e sem a possibilidade de recurso a matérias primas energéticas como teve nos seus dois primeiros mandatos. Mas ao contrário dos recentes resultados eleitorais do lado de cá do oceano, hoje o Brasil voltou a perder o medo de ser feliz. Voltou o triunfo do coletivo, da empatia sobre a indiferença, da solidariedade sobre a desigualdade, da normalidade democrática sobre o autoritarismo. Nos tempos que correm, a normalidade de um novo dia, de uma “manhã [a] renascer e esbanjar poesia”, talvez seja o sinal que desejávamos e a celebração de que precisávamos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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