O necessário, o complementar e o preconceito

O critério para recorrer à complementaridade da prestação privada e social relativamente ao SNS há-de ser, não a ausência de preconceito, mas a existência fundamentada da necessidade de contratar produção adicional.

A responsabilidade do Estado pela realização do direito à proteção da saúde efetiva-se primeiramente através do SNS e de outros serviços públicos, podendo, de forma supletiva e temporária, ser celebrados acordos com entidades privadas e do setor social, bem como com profissionais em regime de trabalho independente, em caso de necessidade fundamentada.

(Lei de Bases da Saúde, Base 6)

(…), quando o SNS não tiver capacidade para a prestação de cuidados em tempo útil podem ser celebrados contratos com entidades do setor privado e social e com profissionais em regime de trabalho independente, condicionados à avaliação da sua necessidade.

(Estatuto do SNS, Art. 29.º)

Nas suas declarações à Comissão Parlamentar da Saúde, no passado dia 19, o ministro da Saúde referiu-se ao recurso à complementaridade da prestação privada e social relativamente ao SNS como uma manifestação de ausência de preconceito quanto a eles, sempre que se revelar vantajoso para as pessoas e para o interesse público. Embora defendendo a prioridade da prestação pública, a referência às vantagens deve ser equacionada, uma vez que elas nem sempre se referem exclusivamente às pessoas e o interesse público ser tradicionalmente associado à competição entre os dois sectores, mau grado não tenha sido isso que ficou estabelecido tanto na Lei de Bases da Saúde como no Estatuto do SNS.

Em ambos diplomas o recurso à prestação privada exige avaliação e a demonstração fundamentada da sua necessidade, as quais seguirão critérios particularmente exigentes na sua formulação: é temporário, supletivo, remete para a incapacidade de os serviços do SNS atenderem as pessoas em tempo útil, exige a avaliação da sua produção e a fundamentação da decisão. Esta combinação de condições está longe do que se costuma entender por interesse público, antes para o interesse da pessoa. Se assim não fosse a complementaridade significaria a inércia do serviço público para encontrar soluções públicas para suprir as necessidades identificadas. Poderia querer dizer que o SNS era uma espécie de sociedade por quotas, em que se negociava o que e quanto caberia a cada um. Isso não seria robustecer o SNS, pelo contrário, era alimentar o gato escondido com o rabo de fora.

Se se considerar que o SNS carece de ser complementado, como o ministro declarou naquela Comissão, então estaremos perante a ausência de um ou um conjunto de serviços públicos, a insuficiente produção de cuidados ou o incumprimento dos tempos de resposta garantidos, a exigir a resposta que melhor satisfaça em cobertura, quantidade, qualidade, acesso, resultados e custos o que foi diagnosticado como uma insuficiência temporária, não pode ser uma refeição a la carte.

Porém, isso há-de decorrer da verificação de uma necessidade fundamentada que só poderá ser colmatada com o recurso a serviços exteriores ao SNS. Os quais serão contratados supletivamente e temporariamente, querendo isso dizer que a demonstração da necessidade há-de ser acompanhada pela demonstração da sua reparação. Não se trata, por isso, do veio para ficar, mas de uma solução limitada no tempo para que as pessoas não sejam prejudicadas no seu direito a serem tratadas, se for esse o caso. O critério há-de ser, por isso, não a ausência de preconceito, mas a existência fundamentada da necessidade de contratar produção adicional.

Com o SNS com as características que a Constituição lhe confere, os serviços privados de saúde existem para servir a liberdade de escolha, para, em igualdade de condições, a pessoa poder preferir um a outro, e fique superiormente decidido que não esteja a ser sistematicamente prejudicado o que está constitucionalmente consagrado, em nome da necessidade de crescimento dos outros. A sobrevivência de uns não deve ser feita à custa da vida do outro, isso seria canibalismo.

Com estas condições satisfeitas, estará afastada a pulsão política pela criação do sistema nacional de saúde, essa figura que procura espalhar perfume nas salas de espera, sempre à espreita de quem a alimente com as suas dores. Se, por uma vez, o que foi aprovado naqueles diplomas for concretizado, sem aproveitamentos de ocasião, pode ser, quem sabe, que venhamos a ter um SNS renovado, uma vez que a equipa ministerial reúne todas as condições para isso.

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