No fim da caminhada, um enorme abraço de esperança

Nos momentos em que o piso foi mais amigável, a cabeça encheu-se de pensamentos e paralelos entre os passos e a vida.

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João da Silva junto à casa da Acreditar, em Lisboa DR

Pouco passava das 16h quando, no passado dia 10 de outubro, terminei a minha caminhada 300 km de esperança que ligou os três IPO de Portugal. Para trás, ficaram 380 km e cerca de 475 mil passos. No Instituto Português de Oncologia do Porto fui recebido por Fernanda Soares, enfermeira diretora, alguém que lida de perto com quem padece de cancro e que conhece a linguagem do desespero e da esperança, e por Ana Monteiro, em representação da Acreditar.

A Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro apoiou esta iniciativa, com a qual foi promovida uma angariação para ajudar a ampliar a casa junto ao IPO de Lisboa — além desta, a Acreditar conta com casas para acolher crianças e jovens no Porto, Coimbra e Funchal. Desconheço o montante angariado com a iniciativa 300 km de Esperança, mas sei que qualquer cêntimo conta, pelo que peço que continuem a ajudar a Acreditar.

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Percorri esta distância com uma estratégia: um passo de cada vez, a mesma estratégia que acredito ser a melhor para lidar com o cancro e com outro género de adversidades com que nos deparamos na vida.

Contudo, ainda que os pontos de ligação fossem os IPO de Portugal, esta não foi uma caminhada sobre cancro ou sobre doença, mas sim – foi, pelo menos, sempre essa a minha intenção –, sobre vida e sobre a importância de lidar com os problemas com realismo e calma, #umpassodecadavez. Foi sobre isso que fui conversando com algumas pessoas que encontrei pelo caminho.

E escrevo algumas porque nem todas estavam para aí viradas e porque eu tinha muito caminho para andar e não podia estar sempre a conversar. Será, então, mais realista escrever que foram 13 dias a caminhar quase sempre em silêncio através de estradas nacionais e secundárias, florestas e caminhos (boa parte do trajeto cumpri-o nos Caminhos de Santiago), aldeias desertas ou quase desertas, percorrendo retas sem fim à vista, desenhando curvas e contracurvas, enfrentando subidas a passo de caracol e descidas ainda mais devagar do que isso (descobri como as descidas podem ser traiçoeiras!), parando muito de vez em quando para conversar.

Cumpri muitos trajetos de forma mecânica, sem outro pensamento que o de colocar um pé após o outro sem me enfiar numa valeta à beira da estrada ou tropeçar num calhau. Todavia, nos momentos em que o piso foi mais amigável, a cabeça encheu-se de pensamentos e paralelos entre os passos e a vida. Registei os mais simples, que são sempre os melhores.

Eis um deles, sem edição ou presunção, tal qual como foi escrito num bloco enquanto repousava junto a uma figueira carregadinha de frutos maduros: “A vida tem muitos caminhos. Às vezes, o caminho termina antes de começar, outras vezes é infinito. Às vezes, é um caminho de satisfação e alegria, felicidade. Outras, um caminho de desconforto e desespero. Outras vezes, é uma mistura de tudo isto, e ainda de confiança e desconfiança, esperança e desilusão, calma e agitação. A vida é uma sucessão de coisas, uma sucessão de caminhos.”

Contrastes. Os contrastes que encontramos todos os dias por toda a parte. “O sofrimento não tem mais explicações, faz parte do equilíbrio da vida. Você vive entre alegria e sofrimento”, escreveu Luís Sepúlveda.

Ao longo dos 13 dias, procurei, tanto nas crónicas no PÚBLICO, como nas partilhas nas redes sociais, promover uma reflexão sobre esperança, o mote desta caminhada. Foram muitas as reações e reflexões que daí resultaram, pelo que, para mim, e é com grande alegria que o escrevo, a maior das realizações desta caminhada foi a onda de reflexão que se gerou em torno da ideia de esperança. É a refletir, individualmente e em conjunto, que descobrimos a razão de ser de muitas coisas que sentimos e fazemos.

Partilho aqui outra das notas no meu bloco, esta escrita numa encruzilhada a caminho de Curia, quando o telemóvel ficou sem bateria e eu sem mapa, entregue ao instinto: “Há quem culpe a vida pelos problemas, há quem culpe os outros pelos problemas (e às vezes são mesmo os outros o problema, claro que sim), há quem assuma uma condição de vítima e passe o dia a lamentar-se e há também quem não se lamente, mas que fique sentado o dia todo agarrado à esperança de que os problemas se resolvam por si só. Considero-me um realista apaixonado pelo conceito de esperança. Ou seja, alguém que gosta de acreditar que as coisas vão correr bem (isso faz de mim um otimista), mas que tem a plena consciência de que nem sempre se vão desenhar como esperamos que se desenhem (e um realista) e que por isso é melhor ir fazendo alguma coisa pelo caminho (esperança ativa).”

Sem GPS, mapa ou bússola, segui, sem certeza, por um dos quatro caminhos. Estava certo, porém era o mais longo, descobri depois. “Nem tudo na vida é um caminho em frente, curto e simples”, escrevi no ocaso desse dia.

Ao longo dos 380 quilómetros a pé, vi demasiadas escolas primárias abandonadas, demasiadas habitações degradadas, demasiado lixo, demasiado desleixo, demasiadas crianças, adolescentes e adultos obesos, demasiado alcoolismo, demasiados idosos solitários que ficavam desconfiados quando lhes pedia para encher a garrafa na mangueira do jardim. Não os condeno pela desconfiança. Todos conhecemos histórias de violência nesses contextos de solidão.

Pego precisamente na ideia da solidão para partilhar uma derradeira história. O 11.º dia de caminhada, entre Águeda e Oliveira de Azeméis, foi especial por várias razões. Além de ter sido o mais longo (40 km) e de me ter sentido como um ciclista apeado numa etapa montanhosa na Volta à França, tal o sobe e desce que marca a geografia entre estas duas cidades, vivi um inesquecível encontro na Ponte do Pinto sobre o Rio Caima, em Palmaz, a 6,5 km de Oliveira de Azeméis.

Desconheço a altura da ponte, mas é alta, muito alta, demasiado alta para alguém se sentar no muro com as pernas penduradas para o vazio. Ora, foi precisamente assim que encontrei o Alberto (nome fictício) de cabeça baixa a olhar o rio. Eu vinha maravilhado com a floresta e em transe com a música da correnteza do rio. Ao vê-lo, um arrepio gelou-me o corpo. Estuquei o passo.

– Então, pá, que estás aí a fazer?

– Nada.

– Não vais cair daí?

– Não.

– Mas estás bem?

– Mais ou menos.

– Como “mais ou menos”? Não estás a pensar saltar, pois não? – perguntei, aproximando-me devagar. Passaram-me várias coisas pela cabeça, desde a mais óbvia (é só um adolescente a fazer parvoíces), à mais trágica.

– Não, estou só aqui a pensar.

– Vai, sai lá daí que está a afligir-me estar a ver-te aí com as pernas penduradas.

O miúdo saiu. Disse-me que tinha 15 anos e que estava triste. Nasceu num país europeu, onde viveu até que há dois anos foi trazido para Portugal. Não gosta de viver ali e quer ir-se embora.

– Rapaz, tenho um filho da tua idade. Isto é uma fase que tens de passar, mas um dia vais fazer tudo aquilo com que sonhas. Tens é de ir fazendo alguma coisa, lendo, estudando, está bem? Não podes ficar a olhar o rio à espera de que as coisas fiquem como queres – disse eu, confiante de que lhe devia dizer aquilo em que acredito, enquanto pensava no meu filho e em mim próprio em criança, voluntariamente solitário, cheio de inseguranças, incertezas e nenhuma esperança.

– Sim… – respondeu-me, com um sorriso.

Demorei a ir-me embora. Conversámos mais um pouco. Fiquei com o contacto dele e prometi que lhe enviava um abraço por aqui.

Aqui fica, Alberto, o meu abraço, um enorme abraço de esperança.

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