Não é preciso muito para ser feliz

Nem todos os peregrinos rumam a Fátima. Na minha rota, a dos Caminhos de Santiago (até ao momento em que tal foi viável tendo em conta a minha rota) encontrei três, apenas três.

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Tem sido a norte de Coimbra que mais caminhantes e peregrinos tenho encontrado. Quase todos vão em sentido contrário ao meu, ou seja, em direção a Fátima. Já mais de uma dezena de vezes me tentaram corrigir a rota, dizendo algo como “ó amigo, vai enganado, Fátima é para baixo”.

Quase todos com quem me cruzei se apressavam para estar a 13 de outubro em Fátima, data em que se comemora a última aparição, quando Maria disse aos pastorinhos, naquele momento acompanhados por mais de 70 mil pessoas, que era a “Senhora do Rosário” e lhes pediu que ali fosse construída uma capela em sua honra. Seguiu-se, segundo rezam as crónicas, o milagre.

Contudo, nem todos os peregrinos rumam a Fátima. Na minha rota, a dos Caminhos de Santiago (até ao momento em que tal foi viável tendo em conta a minha rota) encontrei três, apenas três.

Caminhava por uma rua deserta quando encontrei as Caves de São João. Perguntei se podia visitar e fui principescamente recebido pela dona Lina, que logo me ofereceu de beber. Apesar de pouco passar das dez da manhã, não resisti ao encanto do lugar e ao cativante cheiro da adega – fala-vos um “entendido” que bebe álcool de forma muito esporádica; por vezes, passam-se meses sem provar um gole de cerveja ou de vinho...

Todavia, nesta ocasião aceitei provar dois tintos que me souberam lindamente: um de casta única (Cabernet Sauvignon), de 1996, outro que reúne um conjunto de castas, datado de 1983, apenas oito anos mais jovem do que eu. Gostei de ambos. Apaixonei-me pelo segundo, mais forte, mais vinho. Nem um nem outro me pesaram no adeus à dona Lina, que ainda partilhou comigo uma preocupação quando lhe contei que já vinha a pé desde Lisboa: “Pronto, um homem é um homem, mas às vezes vejo raparigas sozinhas que andam por aí a caminhar no meio das florestas e às vezes passam por zonas em que estão mesmo sozinhas… E ouve-se tanta coisa… Mas pronto, cada um sabe de si. E há também muitas pessoas de idade aí no Caminho de Santiago. Olhe, há aí um homem que passa por aqui todos anos. Anda para cima e para baixo, só faz isso na vida. Morreu-lhe a filha, contou-me ele um dia, então começou a fazer o Caminho para um lado e para o outro.”

Prometi que voltaria para provar mais vinhos com calma, que é como se devem provar os vinhos, e desdobrei o passo. À saída, cruzei-me com um casal. Pelo sotaque, percebi serem brasileiros.

Cerca de 20 minutos depois, parei num café e sentei-me na esplanada a hidratar-me com uma água com gás, bebida mais adequada à prática da caminhada. O casal de brasileiros chegou pouco depois. O diálogo desenrolou-se:

– É a minha primeira vez em Portugal. E vim logo fazer este caminho. E estou a adorar. Estou a conhecer um Portugal das pessoas sem pressa que param para conversar e dizer bom-dia quando nos vêem passar. Isso já não existe no mundo moderno. É uma impressão incrível e muito positiva a que vou levar daqui – conta Luciano Oliveira, de Belo Horizonte, Minas Gerais.

– É mesmo isso – concordo. Mas olhe que nas cidades maiores é difícil encontrar esses portugueses sem pressa que param para conversar e dizer bom dia – acrescento.

– Acredito, claro, no Brasil também é assim. Mas estou encantado. Ainda há pouco nos cruzámos com um casal num trator, os dois tão felizes, não é preciso ter muito para ser feliz… – conclui Luciano.

– Pois não – anuo.

– Encontramos muitas casas vazias, as ruas sem ninguém, parece todo o dia feriado… E as motinhas antigas, que delícia – interveio, encantada, com a voz arrastada, Daniela Carolina, quase em transe.

Estava a tirar-lhes uma fotografia quando chegou Maddie, uma australiana de 20 anos.

– Olha, já aí vem a australiana. Ela voa! – exclama Daniela, de olhos arregalados.

Já com a mochila às costas, tirei a fotografia ao casal, agarrei nos bastões e segui caminho. Maddie abrandou o passo para me perguntar se andava a fazer o “Camino”.

Sorri da pronúncia em espanhol, sem a corrigir, e respondi que não. De seguida, resumi o que andava a fazer. Maddie mostrou-se interessada e entendeu partilhar comigo os seus planos.

– Tenho 20 anos e tirei um ano para viajar pelo mundo. Vim para Portugal passar dois meses. Estive em Lisboa e agora vou fazer o Camino. A minha mãe vai ter comigo ao Porto e depois eu sigo para Santiago. A seguir vou para a Suíça [ou Áustria, não consigo precisar; Maddie falava tão depressa quanto andava] trabalhar numa estância de esqui durante quatro meses com uma amiga que conheci no Camino. A seguir quero ir ao Japão e….

Confesso que me perdi. Não no caminho, que era sempre em frente até Águeda, mas nos planos de Maddie, que traçava a largas passadas tantas certezas sobre os dias que ainda não chegaram. Acompanhei-a até ao destino final, mas ao meu ritmo, um passo de cada vez.

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O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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