Taxas de entrega de tese: a moeda de Caronte do doutorando

Na mitologia grega, Caronte tem o único barco que permite às almas atravessar o rio do limbo para o mundo dos mortos. A travessia só se faz mediante o pagamento de uma moeda ao barqueiro.

São poucos os incentivos para ingressar num doutoramento. O gosto pela investigação e pelo conhecimento científico são os maiores incentivos, mas o caminho cedo se revela tortuoso. Ainda que longe dos valores praticados por alguns mestrados, os programas doutorais exigem o pagamento de propinas de milhares de euros.

Frequentemente, o aluno de doutoramento vê-se obrigado a conciliar as suas obrigações académicas com a sua atividade profissional. A alternativa é o financiamento através de uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que permite (ou melhor, obriga) o estudante a dedicar-se plenamente ao seu doutoramento. O processo de investigação e redação da tese é solitário. Muitas vezes doloroso.

Uma vez ultrapassados estes desafios, a tão desejada entrega da tese deveria constituir um momento gratificante e feliz. Na verdade, é no mínimo anticlimático. Pois que surge Caronte: na mitologia grega, o barqueiro do submundo tem o único barco que permite às almas atravessar o rio do limbo para o mundo dos mortos. A travessia só se faz mediante o pagamento a Caronte de uma moeda.

Caronte assume aqui a forma dos serviços administrativos da universidade, mas infelizmente muitas cobram bem mais que uma moeda pelo simples ato de entregar da tese já concluída e realização das provas académicas de doutoramento. Apenas este pagamento permitirá ao doutorando passar do mundo dos estudantes de doutoramento exaustos para o mundo dos quase-Doutores, prestes a discutir as suas ideias e trabalho de anos num momento que, ainda que não isento de stress, representa um virar de página.

Muitos poderão revirar os olhos e pagar os 50 ou 110 euros exigidos (Universidade de Coimbra e Universidade Nova de Lisboa, respetivamente); outros poderão amaldiçoar os 300 euros que amealharam e que terão de entregar (Universidade do Minho); outros, ainda, ficarão sem palavras quando lhes forem solicitados 725 euros (Universidade da Beira Interior).

Estarei a referir montantes aleatórios, sem sentido? Sim e não. Não são valores inventados para o propósito do artigo, já que são os praticados pelas universidades mencionadas. Mas são aleatórios na medida em que cada instituição de ensino superior estabelece um montante, baseado em cálculos pouco transparentes. Não só os montantes são estranhamente díspares entre instituições, como há universidades que nem sequer cobram qualquer valor ao doutorando no acto de entrega da tese. Não terão essas universidades custos e despesas semelhantes aos das restantes? Como justificar esta arbitrariedade?

Vários doutorandos poderiam pensar que o pagamento apoiaria as deslocações dos membros do júri para a defesa de tese. Mas durante o contexto pandémico, com defesas de tese realizadas virtualmente, esta despesa tornou-se ainda mais incompreensível. No entanto, foi mantida.

Alguns reitores escudam-se na necessidade de financiar gastos correntes (manutenção das infraestruturas, por exemplo). Sendo certo que o Ensino Superior está subfinanciado, será a solução imputar aos doutorandos este custo adicional, pesado, muitas vezes imprevisto, e completamente arbitrário?

Caberá aos órgãos políticos discutir a abolição desta taxa injustificada a arbitrária. No que diz respeito ao Governo, várias medidas deveriam ser concretizadas de modo a valorizar a formação doutoral e o emprego científico. As muitas promessas dos últimos anos tendem a esbarrar na barreira intransponível em que se tornou o Ministério das Finanças. O fim desta taxa seria uma medida concreta que daria um sinal positivo àqueles que procuram pesar os prós e os contras da frequência de um doutoramento.

A Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) tem, entre outras lutas, procurado alertar para a necessidade de eliminação desta taxa injusta e arbitrária, pelo que recentemente propôs um abaixo-assinado, assim lançando o repto à Assembleia da República (“Pelo fim das taxas de entrega de tese”).

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