Poeta fosse eu para cantar um jardim (da Parada)

“Pelo jardim deliro e divago…” (do poema Jardim, de Sophia de Mello Breyner)

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Jardim Teófilo Braga, mais conhecido por Jardim da Parada, em Campo de Ourique, Lisboa Rui Gaudencio

Engenharia e poesia são compatíveis. Jorge de Sena era engenheiro civil e um grande poeta. Mary Nodine publica numa revista de geotecnia americana, Leblanc-Poirier é engenheiro civil e poeta premiado. A conceituada escola de engenharia de Lausanne EPFL realizou em 2022 a terceira edição de um concurso de poesia para os estudantes. Algumas escolas de engenharia nos EUA incluem a poesia com o intuito de fortalecer a sensibilidade, melhorar a criatividade e a comunicação não técnica. Uma dimensão que ultrapassa a competitividade, uma interseção de “mundos” aparentemente opostos. A poesia é individual, transmite sentimentos e estados de alma e é domínio de palavras e sonoridades. A engenharia envolve equipas, números, equações, máquinas e desenhos. Ambas são indispensáveis para a vida dos Humanos. O domínio da poesia é íntimo e imaterial. A engenharia civil e as obras públicas ocupam espaços físicos exteriores. Ambas podem deixar marcas irreversíveis, duradouras.

A criação poética é livre e submete-se ao sentir e vontade do autor. Em meados do séc. XIX (1844), o engenheiro civil Jules Dupuit ficou associado à conhecida análise custo-benefício para justificar racionalmente decisões na construção de obras públicas. Mas avaliar com números todos os benefícios e custos (impactos) expectáveis e incertos (riscos) não é tarefa fácil, apesar dos métodos complementares mais recentes. No séc. XX, novos condicionamentos impuseram-se: os associados a impactos, ambientais e culturais, e à opinião pública. Nem sempre o mais económico é aceitável. Em Portugal, o caso da barragem de Foz-Coa (1995) foi paradigmático. A obra pública é para todos, mas subsiste um potencial conflito que (ainda) nem sempre é bem resolvido: a comunicação entre o promotor da obra e os cidadãos. Com os que entendem que há valores que lhes são caros e não foram bem considerados na avaliação custo-benefício da solução técnica.

É o momento de introduzir o motivo da presente reflexão e da referência metafórica à poesia como mediação. O local é o Jardim Teófilo de Braga, um poeta que foi presidente da República, conhecido por Jardim da Parada. Um local central no bairro lisboeta de Campo de Ourique. Um bairro com plano aprovado em 1878 e concluído 80 anos depois. Uma grelha ortogonal de ruas e quarteirões de prédios de habitação. Decidiu-se, com sageza, prescindir do negócio, dos prédios, num quarteirão e proporcionar nele ócio e sombra em jardim público. Uma bênção que se tornou num oásis verde.

Conheço muito bem este jardim. Nasci, cresci e vivi muitos anos no bairro e frequento esse jardim para ler o PÚBLICO e praticar a meditatio em ambiente privilegiado. Árvores de grande porte, frondosas, proporcionam sombras e brisas que atenuaram a canícula deste Verão, para mim são seres amigos. Uma marca única: as fiadas de grandes lódãos com cerca de 12 metros de altura que delimitam o jardim. Uma “colunata” monumental. Entre a estátua da Maria da Fonte e o memorial do professor Ferreira de Macedo, observo e ouço. O parque infantil com muitas crianças que brincam e gritam, o chilrear de pássaros, o lago com patos e um repuxo de água que emite um som fresco e tranquilizador. Bancos de madeira com apoio dorsal convidam a um descanso, uma conversa, um namoro. O convívio entre gerações é natural. Não é só o português que se ouve, habitantes de outros países apreciam este jardim. Com comércio ao redor é o coração do bairro. Um local poético, mas frágil!

Uma nuvem negra preocupa alguns amigos deste jardim. A futura estação do metropolitano (linha vermelha) sob o jardim. Uma caverna “trepidante” componente de uma obra pública importante e necessária. Um estudo prévio para avaliação ambiental e uma consulta pública: umas 1000 páginas e 49 desenhos. Um destes (o 1.32) indicava a “área mínima” do estaleiro: metade do jardim e com dois poços de obra. Para a execução da obra, o abate de alguns lódãos da “colunata” que referi e a demolição do parque infantil. Elevadores e torre de ventilação virão. Documentos úteis para discussões entre técnicos, mas difíceis para o público. Em reuniões de esclarecimento, mostraram-se benefícios com muitos números. A justificação para a localização da estação não foi, contudo, clara e convincente para todos. Um estilo hermético de competência técnica: análises que eliminaram alternativas, complexidades da linha, matrizes de descritores, análises de “procura” etc. A “questão não é técnica” ouviu-se mais que uma vez. A opinião pública: haverá os indiferentes, haverá os que aceitam a obra como inelutável e desejável e acreditam que o dano no jardim será mínimo e os que consideram as obras no jardim uma “profanação” de um espaço simbólico e defendem um local alternativo.

Penso que ninguém se opõe ao metropolitano no bairro, ao direito a uma melhor mobilidade, nem às vantagens da descarbonização e o tempo futuro actuará. Mas, no presente, os benefícios de uma obra não devem impedir a análise crítica de situações locais. A maioria dos produtos de engenharia submete-se aos mercados e aos consumidores, mas a obra pública resulta de uma vontade política e por isso, para além de esclarecer, há o dever dos responsáveis de compreender e saber convencer quem questiona com convicção o local da estação. Há que entender a intervenção do público como teste de robustez e coerência do projecto e não como um bloqueio irracional.

Se a Inteligência Artificial tem o “teste de Turing”, o questionamento público da solução técnica num local também tem o seu teste: o “teste da hipotética exclusão”. Imagine-se que no quarteirão do jardim só existiam edifícios. Não haveria estação no bairro? Na área 400 vezes maior do bairro não há um local alternativo? Os benefícios e custos do melhor dos locais alternativos seriam então apresentados e comparados com os da solução actual. Talvez fosse um método mais convincente e apaziguador que mostraria atenção pela crítica suscitada. As novas tecnologias permitiriam a apresentação 3D da intervenção no jardim, constituindo, assim, um compromisso com o público. Não estamos em modo de participação, mas há esperança, já se anunciaram alterações no estaleiro, na zona da obra. O presidente da junta de freguesia tenta estabelecer pontes e minimizar impactos. Aguardemos.

Entre a admiração que tenho pela engenharia e pelo jardim, sinto-me como caminhante em difícil “linha de festo”, entre duas perspectivas opostas. Talvez com poesia nasça uma solução consensual!

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