Portugal precisa do Brasil para ser português?

Portugal, para ser português, precisa de acreditar que exerce algum tipo de influência sobre o Brasil, e que tem o seu respeito. Mas isso não acontece. O Brasil é um país superlativo que nunca reconheceu em Portugal uma prioridade longeva.

No dia do bicentenário da independência do Brasil, António Costa publicou um artigo de opinião na Folha de S. Paulo para justificar porque é que Portugal se associou aos festejos. Se a presença de Marcelo Rebelo de Sousa era uma inevitabilidade histórica e se a relação entre Portugal e o Brasil “é umbilical”, porquê a necessidade de se explicar? Vários órgãos de imprensa portugueses republicaram acriticamente trechos do texto, mas, no Brasil, passou praticamente despercebido, apesar de ter sido impresso no principal jornal brasileiro.

Nos últimos 200 anos, a relação entre os dois países foi-se modelando, ao longo do tempo, de acordo com oscilantes interesses nacionais, circunstâncias inesperadas, visões ideológicas cíclicas e afeições pessoais entre alguns líderes. Nada que seja incomum nas relações internacionais entre Estados. Mas, no caso do Brasil e Portugal, há um elemento imaterial que torna a relação incomparável e complexa: a consciência autoinduzida, por parte de Portugal, do seu excepcionalismo.

Como ensinaram os republicanos brasileiros, as identidades coletivas podem ser moldadas. E, ao longo de centenas de anos, a nossa identidade portuguesa foi forjada pela ideia de que a vulnerabilidade do país (pobreza, pequenez territorial e isolamento geográfico) pode ser superada pela heroicidade do seu povo. A função messiânica, o ímpeto pluricontinental, a nossa capacidade miscegenadora e constituição multirracial, foram celebradas por Camões, António Vieira, Pessoa, Freyre sem meios-tons. O impulso português para o universalismo, assente em muitos elementos tangíveis e alguma seletividade memorial, está presente em discursos públicos, no batismo de obras públicas com nomes de navegantes, nos livros escolares.

A partir de 1974, com o fim do império colonial e o enxugamento territorial do país, Portugal apropriou-se da ideia de lusofonia para continuar a irradiar a sua influência pelo mundo. Criou a CPLP, atualmente com 9 países-membros. Portugal também é um país europeu e europeísta, mas na Europa voa sem sair do lugar; a sua influência é diretamente proporcional à sua vulnerabilidade. É apenas no campo da lusofonia que Portugal tem conseguido consumar a sua identidade universal. O que significa que Portugal, para ser português, precisa de acreditar que exerce algum tipo de influência sobre o Brasil, e que tem o seu respeito.

Mas isso não acontece. O Brasil é um país superlativo que nunca reconheceu em Portugal uma prioridade longeva. E sempre que o Brasil mostra alguma frieza, Portugal contorce-se, retorce-se, desconforta-se e azia-se enquanto sob o tom para falar “nos laços de amizade que unem dois povos irmãos.”

Bolsonaro, Temer e Dilma mostraram muita indiferença por Portugal. As passagens pelo país foram poucas e fugidias. Como reagiu Marcelo Rebelo de Sousa? Fazendo 6 visitas ao Brasil em 6 anos, um recorde que viola códigos diplomáticos de reciprocidade. Marcelo nasceu no berço do universalismo português. Na década de 1960, o seu pai, Baltazar Rebelo de Sousa, foi nomeado governador-geral de Moçambique. Após o 25 de abril, refugiou-se no Brasil. O avô de Marcelo, António Joaquim, viveu em Angola, depois de também ter trabalhado no Rio de Janeiro. Para o presidente, as capitais da lusofonia, de Díli a Luanda ou a Maputo, não são capítulos da história portuguesa, mas páginas no álbum de família. O Brasil é um assunto de Estado, mas também é uma memória pessoal.

Consensualizou-se em Portugal a ideia de que a presença do Presidente no bicentenário da independência do Brasil era uma inevitabilidade histórica. As relações são entre Estados e não governantes e o Brasil não se pode esgotar na pessoa de Bolsonaro, um líder consensualmente desdenhado pelos portugueses.

Mas era a presença de Marcelo inevitável? O Rei de Espanha participou nos 200 anos da independência da Colômbia (em 2010), do Chile (em 2010), da Argentina (em 2016) ou da Venezuela (em 2010-2011)? Não. São inúmeros os exemplos em que chefes de Estado de países com tradição colonial não participam neste tipo de cerimónias. A presença de Marcelo no Brasil foi um gesto retórico de um presidente que é particularmente sensível à importância de manter o Brasil dentro de uma certa esfera de influência. A sua 6.ª visita ao Brasil foi mais importante para os portugueses do que para os brasileiros.

Mas está a relação entre Brasil e Portugal condenada a ser um rendilhado de insígnias, um permanente pretérito perfeito, um discurso panegírico? À coluna, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil Celso Lafer (1992, 2001-2002) salienta que os dois países sempre conseguiram encontrar “convergências úteis” sobre temas pontuais, principalmente quando há afinidade pessoal entre líderes luso-brasileiros. FHC nutria muito apreço por António Guterres e Jorge Sampaio, o que facilitou a intervenção de Portugal, na União Europeia, para que o Brasil não fosse prejudicado pelo surto da doença das “vacas loucas” em 2001-2002. A boa relação entre Lula e José Sócrates ou entre os ministros Celso Amorim e Luís Amado e Celso Lafer e Jaime Gama são outros exemplos. Mas o Brasil é pragmático e transacional. É condescendente com a retórica universalista portuguesa apenas quando vê a possibilidade de extrair dividendos específicos.

E o futuro? Uma eventual vitória de Lula abrirá um campo de novas oportunidades. Se cumprido o programa eleitoral, a sua política externa será vigorosa. Enquanto o vice-presidente Alckmin arrumará a casa interna a partir do palácio do Jaburu, Lula tentará arrumar o mundo a partir do Planalto.

Em declarações à coluna, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Luís Amado (2006-2011) reforçou que estamos a atravessar uma “reconfiguração geopolítica de larga escala”. Enquanto o Norte Global obedece a uma lógica binária que opõe países democráticos a Estados autocráticos, o Sul Global tem uma visão mais utilitarista e menos principiológica das relações internacionais. Quando a expulsão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU foi a votos, em abril, 82 países do Sul puxaram o travão de mão, incluindo a Indonésia, Índia, México e China. Estes países têm mostrado uma posição neutral no conflito Ucrânia-Rússia. Estimativas de bancos e consultoras europeias indicam que, em 2030, 7 das 10 maiores economias do mundo serão do Sul Global, incluindo as duas primeiras (China e Índia). As declarações públicas de Lula, nunca criticando taxativamente a Rússia, estão alinhadas com este novo contexto, facilitando a sua ascensão como líder do Sul Global. Hoje o trono está vazio.

Surge, assim, uma oportunidade para Portugal forjar com o Brasil de Lula uma aliança de futuro, ao servir como um dos países do Norte Global que é capaz de construir pontes com o Sul. Se atualmente os dois hemisférios são o contraponto um do outro e estão envoltos por um manto de animosidade, Portugal e o Brasil podem serem interlocutores estratégicos numa missão que extravasa a relação bilateral. Ao dar a Portugal acesso a novos espaços de influência a Sul, o Brasil ajudaria, agora com outros contornos, os portugueses a envigorarem a sua idealização universalista e a perceberem que o ideário da lusofonia também tem limitações. A língua portuguesa é um poderoso instrumento de unificação entre países, mas também é uma divisa que aparta povos. Portugal e o Brasil podem ser maiores do que o seu idioma comum.

Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo e republicado, com atualizações, ao abrigo de uma parceria com o PÚBLICO.

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