ONU: “Morremos mais cedo, somos menos instruídos e os nossos rendimentos estão a cair”

Relatório das Nações Unidas argumenta que uma série de crises sem precedentes, nomeadamente a guerra na Ucrânia e a pandemia da covid-19, atrasaram o progresso humano em cinco anos e alimentaram uma onda global de incertezas.

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“Tempos incertos, vidas instáveis: moldando o nosso futuro num mundo em transformação” é o novo relatório da ONU Reuters/EDUARDO MUNOZ

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) anunciou que, pela primeira vez desde que foi criado, há mais de 30 anos, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – uma medida das expectativas de vida, níveis de educação e padrões de vida dos países – diminuiu por dois anos consecutivos, em 2020 e 2021, apagando os avanços positivos dos últimos cinco anos.

“Isso significa que morremos mais cedo, que somos menos instruídos e que os nossos rendimentos estão a cair”, disse o chefe do PNUD, Achim Steiner, em entrevista à AFP. “Com estes números, podemos ter uma noção de por que tantas pessoas estão a começar a sentir-se desesperadas, frustradas, preocupadas com o futuro”, disse.

O desenvolvimento humano voltou aos níveis de 2016, revertendo grande parte do progresso em direcção aos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável. A reversão deste resultado é quase universal, uma vez que mais de 90% dos países registaram um declínio na pontuação do IDH em 2020 ou 2021 e mais de 40% caíram nos dois últimos anos, sinalizando que a crise ainda se está a aprofundar cada vez mais para muitos países.

O último Relatório de Desenvolvimento Humano, “Tempos incertos, vidas instáveis: moldando o nosso futuro num mundo em transformação”, lançado esta quinta-feira pelo PNUD, dá também um grande destaque às camadas de incerteza que “se estão a acumular e a perturbar a vida de maneiras sem precedentes.” “Os últimos dois anos tiveram um impacto devastador para milhões de pessoas em todo o mundo, enquanto crises como a da covid-19 e a guerra na Ucrânia se sucederam e trouxeram amplas mudanças sociais e económicas, mudanças planetárias perigosas e que contribuem para o aumento da polarização”, acrescenta.

Segundo o estudo, o mundo está a “oscilar de crise em crise”, e está também preso num ciclo interminável de combate a incêndios e outros desastres naturais, muitos deles causados pelas alterações climáticas - ficando incapaz de enfrentar a raiz dos problemas mais fulcrais. “Sem uma mudança brusca de rumo, podemos estar a caminho de ainda mais privações e injustiças”, alerta o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

Enquanto alguns países conseguem começar a recuperar, esta mesma recuperação é desigual e parcial, tornando ainda mais nítidas desigualdades no desenvolvimento humano em termos mundiais. A América Latina, a África Subsaariana e o Sul da Ásia, que foram particularmente atingidos, ainda não mostram sinais de recuperação.

“O mundo está a lutar para responder a crises consecutivas. E neste momento temos também as crises do custo de vida e da energia, que, embora seja tentador que os Governos se foquem em soluções e medidas rápidas - como subsidiar combustíveis fósseis e outras tácticas de socorro imediato -, acabam por atrasar as mudanças a longo prazo que devem ser feitas”, sublinha Achim Steiner.

“Estamos colectivamente paralisados ​​no que diz respeito a este tipo de mudanças. E, num mundo definido pela incerteza, precisamos de um sentimento renovado de solidariedade global para enfrentar os nossos desafios comuns e interconectados”, acrescenta,

O relatório concluiu que a mudança necessária não está a acontecer e sugere várias razões para tal, incluindo o modo como a insegurança e a polarização se alimentam para impedir a solidariedade e a acção colectiva que são necessárias para enfrentar as crises a todos os níveis. Novos cálculos mostram, por exemplo, que aqueles que se sentem mais inseguros também são mais propensos a ter visões políticas extremas.

“Mesmo antes da chegada da covid-19, já conseguíamos observar paradoxos do progresso com insegurança e polarização. Hoje, com um terço das pessoas em todo o mundo a sentirem-se stressadas, e com apenas menos de um terço com confiança nos outros, enfrentamos grandes obstáculos para a adopção de políticas que funcionem para as pessoas e para o planeta”, diz Achim Steiner.

“Esta nova análise instigante visa ajudar-nos a quebrar este impasse por forma a traçar um novo rumo para a nossa actual incerteza global. Temos uma janela estreita para reiniciar os nossos sistemas e garantir um futuro baseado em acções climáticas decisivas e novas oportunidades para todos”, conclui,

“Para traçar um novo rumo, o relatório recomenda a implementação de políticas que se concentrem no investimento – desde o sector da energia renovável, passando pela preparação para futuras pandemias – incluindo medidas de protecção social – com vista a preparar a nossa sociedade para os altos e baixos de um mundo incerto”, pode ler-se no relatório.

“Para navegar na incerteza, precisamos dobrar o desenvolvimento humano e olhar para lá da melhoria da riqueza ou da saúde das pessoas”, diz Pedro Conceição, do PNUD, um dos principais autores deste relatório. “Além disto, precisamos de proteger o planeta e fornecer às pessoas as ferramentas necessárias para se sentirem mais seguras, recuperar o controlo sobre as suas vidas e ter esperança no futuro.”

“Não podemos continuar com a cartilha do século passado”, argumentou Steiner, preferindo o foco na transformação económica em vez da confiança no crescimento como um remédio final.

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