Ressuscitar o tigre da Tasmânia

Na melhor das hipóteses teremos um animal muito parecido fisicamente com um tigre da Tasmânia. Mas não haverá ninguém para lhe ensinar a ser um tigre da Tasmânia. Esse projeto acabou.

O último tigre da Tasmânia conhecido morreu a 7 de setembro de 1936 no zoo de Hobart. Faz hoje anos. A carcaça foi jogada para o lixo, tal a falta de interesse que suscitou à época. Mas não terá sido o derradeiro sobrevivente da sua espécie. Nas décadas seguintes, alguns terão persistido em estado selvagem, mas já não em número suficiente para que a espécie pudesse recuperar por si, beneficiando do estatuto de proteção que lhe fora atribuído tão-só dois meses antes da morte de Benjamin, assim se chamava o animal, capturado três anos antes.

Em 1947 chega àquela ilha australiana o jovem biólogo Eric Guiler, de mangas arregaçadas, para estudar este e outros marsupiais no seu habitat natural. Vontade, dedicação e profissionalismo não lhe faltavam, mas reformou-se, muitos anos depois, sem nunca ter conseguido ver o tigre marsupial das listas dorsais.

É dele o mais belo relato de como os vestígios no campo foram desaparecendo à medida que os anos passavam, até que deixaram de existir, e que podemos ler no seu livro de fim de carreira. A ele devemos muito do conhecimento que detemos hoje sobre a ecologia desta espécie e por acréscimo de muitas mais espécies da Tasmânia que ainda por lá andam. Para quem passou dezenas de anos a estudar uma espécie que nunca viu, o assumir em livro a sua extinção faz transparecer derrota. A derrota existiu, mas não foi de Eric Guiler, certamente.

O tigre da Tasmânia é uma espécie icónica. Está presente nas placas de matrícula e no brasão da ilha. E o interesse da sociedade australiana sobre o tema é muito grande. As notícias de avistamentos não confirmados abundam, até no continente australiano onde os paleontólogos dizem que a espécie já estará extinta há milhares de anos. É por isso um bom candidato a “programas de ressurreição”, tal como os mamutes, ou no nosso imaginário mais longínquo do Parque Jurássico, os dinossáurios.

O recente anúncio da empresa Colossal Biosciences de criar um embrião viável de tigre da Tasmânia só é novidade na tecnologia que se pretende empregar (edição de genes, conhecida pelo acrónimo CRISPR). Já em 2000 existiu no Museu da Austrália uma tentativa com fins semelhantes, que foi abandonada, mas que conseguiu angariar muitos fundos privados que permitiram apetrechar luxuosamente os laboratórios do museu, e fazer com que o promotor da ideia ascendesse a diretor, sendo depois destituído.

É, pois, um terreno fecundo para aproveitamentos menos escrupulosos, dificilmente escrutináveis pela sociedade apaixonada pelo tema. Não tenho dúvidas de que assim que houver outra tecnologia que encaixe num novo “programa de ressurreição”, ela será devidamente anunciada e não faltarão interessados em financiá-la.

Na melhor das hipóteses teremos um animal muito parecido fisicamente com um tigre da Tasmânia. Com sorte, e para nosso deleite, será hipoalergénico e pouco agressivo para lhe podermos dar festinhas em algum santuário. Mas não haverá ninguém para lhe ensinar a ser um tigre da Tasmânia. Esse projeto acabou.

Ganharemos alguma coisa com isto, mesmo sem tigres bebés para mostrar aos patrocinadores? Acredito que sim, que iremos aprender muito, sobretudo no aperfeiçoamento da tecnologia proposta direcionada este fim.

A questão é o que iremos perder. E certamente perderemos interesse, como sociedade, na conservação de espécies e habitats em risco, sobretudo se não forem tão carismáticos como este animal. E interesseiramente surgirá a confortável esperança de que poderemos sempre guardar a informação de como construir uma espécie, prometendo a nós mesmos que o faremos assim que o nosso crescimento económico nos permitir, abrindo caminho para os nossos projetos que hoje colidem com a conservação da natureza tal como a conhecemos hoje. E isto é muito perigoso. Deixemos a arca de Noé para as escrituras.

Gostaria de conhecer um geneticista com a garra de Eric Guiler, que só não arregaça as mangas porque o protocolo laboratorial não o permite, mas cuja dedicação e empenho na sua área de trabalho seja tal que nunca ponha o acessório à frente do essencial, e que com ele possamos progredir no caminho da genética da conservação das espécies e habitats que precisamos de preservar. E que um dia, mais tarde, nos escreva uma bela história de como as coisas mudaram. E que seja uma vitória, de preferência. Não conheço, mas deverá haver.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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