A corrida contra o tempo para salvar os insectos

Depois da II Guerra Mundial, a paisagem europeia encheu-se de florestas de crescimento rápido, pecuária intensiva e monoculturas agrícolas. Hoje, muitos destes terrenos estão a morrer. Há uma corrida contra o tempo para recuperar a biodiversidade perdida. Combate: a terceira, e última, parte de uma série de reportagens.

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O estudante de biologia Ferdinand Meiss em trabalho de campo na Alemanha para estudar grilos

Lisa Reiss pega numa bússola para perceber o Norte. O GPS tinha acabado de lhe dar as indicações do ponto onde ia monitorizar a presença de grilos, mas no meio do mato nem sempre é fácil estar seguro dos pontos cardeais. “É aqui”, anuncia para que Ferdinand Meiss a possa ouvir. Ela é a bióloga que dirige a investigação: está a fazer um doutoramento sobre uma espécie que habita a copa das árvores, o Barbitistes serricauda. Ele é um dos nove estudantes de biologia na Universidade de Trier, Alemanha, que estão este Verão a trabalhar neste projecto.

A cena acontece num bosque atrás da aldeia de Wolsfeld, mesmo no centro do Plateau de Ferschweiler, uma área protegida na Renânia-Palatinado. Usando uma corda, os cientistas formam um quadrado com 20 metros de cada lado. “Temos 350 pontos de observação iguais a este para determinar a presença do grilo em cada habitat”, explica Lisa Reiss. “Dentro de cada quadrado determinamos os níveis de luz que a copa das árvores deixa passar, a densidade e a identidade da vegetação rasteira, dos arbustos e das árvores. Depois, tentamos perceber se há grilos ou não.”

Criii-criii-criii-criii. Os seres humanos costumam dizer que grilos e gafanhotos são animais que cantam. Hollywood sabe-o bem: não há melhor banda sonora para uma noite de Verão num filme do que o barulho que estes animais produzem quando esfregam as asas. “Quando falamos de ortópteros [os insectos saltitantes], a melhor forma de determinar a sua presença é escutar as suas canções”, diz Reiss. Como eles são mais activos ao final da tarde e durante a noite, é essa a altura em que os cientistas avançam para o terreno.

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Ferdinand Meiss e Lisa Reiss em trabalho de campo no estudo de grilos, na Alemanha

Há uma característica peculiar nos Barbitistes serricauda: só as crianças os conseguem ouvir. Os sons que emitem ecoam a 25 kilohertz, uma sintonia que alguns seres humanos têm capacidade de escutar durante a infância, mas começam inevitavelmente a perder durante a puberdade. “Então trazemos um detector de ultrassons para conseguirmos escutá-los”, explica a bióloga. Faz-se silêncio durante uns segundos para que se possa ouvir a insonoridade da floresta. E de repente percebemos que, no topo das árvores, estava a acontecer uma cantaria desenfreada que ninguém podia adivinhar.

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A investigadora Lisa Reiss a gravar o som de grilos, na Alemanha

A monitorização destes grilos faz parte da corrida contra o tempo que está hoje em marcha para salvar a biodiversidade do planeta. “O declínio chegou a um estado que é muito difícil de reverter”, diz Axel Hochkirch, da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). “E é por isso que precisamos de acelerar as medidas de conservação dos insectos.” Alguns projectos, como o que Lisa Reiss está a liderar, não são apenas de análise, são também de intervenção.

Na Renânia-Palatinado não existiam mais do que três registos da presença de Barbitistes serricauda até 1989. “Nós sabemos que, em todo o continente [europeu], os grilos estão a desaparecer, mas só agora estamos de facto a monitorizar esta espécie para perceber a evolução da sua presença”, continua ela. “Nos estudos entomológicos isto acontece muitas vezes, porque não há trabalho feito no passado.” Mas o desaparecimento é tão óbvio e tão urgente que já há medidas de conservação a ser impostas.

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Grilo na Alemanha

O projecto de Reiss chama-se ELSA e tem financiamento garantido até 2027 – mas nem todo o dinheiro vai ser usado para visitas de campo e análises de laboratório. “O nosso objectivo é recuperar e replantar carvalhais para que esta e outras espécies de insectos possam sobreviver”, explica a cientista. Afinal de contas, os estudos que já conseguiram completar mostram indicadores positivos de sobrevivência nas florestas mais nativas. “Num único carvalho podem viver até 1400 diferentes tipos de invertebrados”, diz a cientista.

Depois da II Guerra Mundial, a floresta europeia mudou. “Construíram-se bosques de crescimento rápido, que permitiram grande produtividade de madeira. Os carvalhais foram substituídos por árvores que não eram nativas desta paisagem, nomeadamente por pinhais que não se dão a esta altitude”, explica Lisa Reiss. “Então, com as alterações climáticas, estas árvores começaram a morrer. Elas não conseguem resistir aos fenómenos extremos como as tempestades, as cheias ou períodos de seca como os que estamos a viver em 2022.”

Ferdinand Meiss, o estudante que a acompanha nos trabalhos de campo, interrompe a conversa para dizer isto. “Às vezes estamos no terreno, ouvimos uma rajada de vento e passado uns segundos ouvimos mais uma árvore a cair.” Reiss concorda e replica: “Apenas 20% das árvores na Alemanha são saudáveis.”

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Floresta na Alemanha

O Programa ELSA disponibiliza por isso fundos para plantar novos carvalhais no Oeste do país. “Pagamos a agricultores e lenhadores para transformarem as suas propriedades, temos até a hipótese de comprar terrenos nós próprios para recuperar habitats biodiversos e nativos. Os carvalhais podem não crescer tão depressa, mas são mais resistentes às alterações e os próprios produtores florestais estão a começar a entender que os terrenos estão a tornar-se inviáveis e é preciso intervir”, diz a cientista. A solução, aparentemente, são os insectos.

Agricultura vs ambiente

A Política Agrícola Comum que a União Europeia desenvolveu para os seus Estados-membros ajuda a explicar a falta de diversidade que existe hoje nos bosques de todo o continente. “O exemplo mais recente são os campos que estão hoje a ser plantados para fazer biodiesel”, diz Axel Hochkirch. A Europa lidera mundialmente o uso de biodiesel no sector dos transportes, mas muitos ambientalistas contestam o impacto que as monoculturas de cereais provocam na natureza.

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O biólogo Axel Hochkirch

A conversa com Hochkirch decorre numa reserva natural alemã chamada Langheck, junto ao rio Moselle, conhecida por acolher mais de 20 espécies de orquídeas. É também ela um paraíso para a biodiversidade de insectos. “Mas se repararmos bem, estamos rodeados de monoculturas de vinhas – e são precisamente as culturas intensivas e sempre das mesmas espécies que causam este declínio tão alarmante”, diz o entomólogo. A factura, como já se viu na segunda parte desta série de reportagens, é elevada para a humanidade.

No Norte do Luxemburgo, um grupo de biólogos junta-se para contrariar o pior cenário. “A situação dos insectos pode ser descrita como apocalíptica, mas se todos os actores envolvidos se comprometerem com a sua protecção, ainda podemos revertê-la”, diz o biólogo Alain Klein, do Parque Natural do Our. É daqui que têm partido os esforços do Grão-Ducado para proteger os invertebrados. O país começou a agir cedo e, por isso, pode orgulhar-se de alguns resultados animadores.

O programa nacional de protecção de insectos investe quase dez milhões de euros em políticas de biodiversidade nos três parques naturais do país. Our, Mulherthal e Alto-Sûre. Além disso, o Luxemburgo arrancou o ano passado um plano de protecção e investimento específico para polinizadores, que tem financiamento garantido até 2026. Agricultores que queiram reconverter os seus campos para torná-los mais amigos dos insectos têm apoios garantidos. “A agricultura e o ambiente não precisam de continuar de costas viradas”, diz Klein. “Há medidas que podemos desenvolver para que ambos consigam viver em conjunto.”

Alain Klein leva-nos a dar uma volta pelas terras do Norte. Com ele seguem outros dois biólogos: Maurice Schilling e Ander Erpelding. O primeiro vai seguir as pisadas de Klein para implementar as medidas que já foram tomadas no Our na região Leste do país, o Mullerthal. O segundo é o técnico que tem gerido muitos trabalhos no terreno. Por toda esta região ele tem espalhado madeiras e pedras que criam hotéis para os decompositores. Mas esse é apenas um dos trabalhos.

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Os biólogos Alain Klein (à esquerda) e Maurice Schilling, no Parque Natural do Our, no Luxemburgo

Uma das grandes apostas luxemburguesas tem sido nos muros de pedra seca. São feitos sem recurso a cimento, apostando no encaixe das pedras. “São abrigos de grande biodiversidade, sobretudo para insectos e répteis”, diz Erpelding. No final de Abril, e novamente no início de Maio deste ano, o Parque Natural pegou em 15 homens que tinham pedido asilo ao país e estavam instalados numa organização local de apoio, o SINGA – e durante um mês formaram-nos na arte de construção destas paredes.

“Tínhamos aqui gente do Afeganistão, Colômbia, Etiópia, Senegal e Síria. Sabemos que a inserção no mercado de trabalho é difícil para os refugiados. Mas agora já temos alguns que encontraram trabalho neste ofício”, diz Ander Erpelding. São precisos braços para levantar muros de pedra seca. “E, apesar de haver cada vez mais procura, há pouquíssima gente a saber fazê-lo. Então conseguimos tornar uma fragilidade numa vantagem. Protegemos o ambiente e encontramos soluções para quem não as tinha.”

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Campo de golfe

A viagem segue para o campo de golfe de Clerveaux, na região das Ardenas. Foi Dax Hern, director da infra-estrutura, quem contactou o parque para rodear o green de biodiversidade. “Plantámos corredores de flores, instalámos depósitos de madeira morta, conseguimos que parte da erva dos terrenos fosse apenas cortada duas vezes por ano – em vez de cinco ou seis”, diz Alain Klein. A irrigação dos relvados está a ser feita graças ao reaproveitamento da água das chuvas e os biólogos acreditam que este é um bom exemplo de como se podem tornar amigos da biodiversidade os lugares que nos habituámos a ver como atentados ecológicos.

Há também quintas que estão a ser renovadas – e onde se plantam faixas de ervas e flores no meio de campos de cereais. “Parece que os agricultores perdem terreno, mas não é bem assim. Podem recuperar pomares e aumentar as suas produções graças a uma polinização eficiente”, diz Klein. Maurice Schilling acrescenta um detalhe relevante: “Temos de usar flores nativas destas paisagens e por isso estamos a criar sementeiras com espécies nativas da região.”

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Campo de flores no Luxemburgo

O trabalho nas estufas é cumprido por cidadãos inscritos no Comité National de la Defense Social – uma organização governamental que acolhe pessoas incapazes de aceder ao mercado de trabalho. Essas flores são inevitavelmente de cor amarela, azul e brancas. São as preferidas dos insectos e, aliás, muitos deles não conseguem ver o vermelho. Além de andarem já a distribuir amostras de sementes pelos cidadãos, também vão usá-las para reformular 54 jardins privados e torná-los amigáveis para invertebrados.

Axel Hochkirch diz que o declínio tem um lado impossível de reverter, sim, mas que pelo menos agora há uma consciência nova: toda a gente sabe o que é preciso fazer. O cientista diz que é preciso que o mundo entenda que os mais minúsculos dos animais são o cimento da ecologia e que o seu desaparecimento provocará a extinção da humanidade. “E temos de ver outra coisa”, diz o entomólogo. “Todas as espécies têm o direito de existir e isso devia ser algo como um direito humano. É como um direito global à existência de biodiversidade.” E essa é a única forma de impedir um desastre global.

Este trabalho foi feito com o apoio da Earth Grant do Journalismfund.eu

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