Sintra um lugar que é nosso? Estão a gozar?

Nem é preciso ser residente, o estado do sítio torna a propaganda da câmara ofensiva não só para os que vivem em Sintra como também para quem a visita em busca do espírito do lugar.

“Sintra um lugar que é nosso” é o novo slogan da Câmara Municipal de Sintra.

Entre a confusão do trânsito, as construções dissonantes ou mesmo monstruosas, o artesanato feito na China, as esplanadas que invadem passeios e ruas, os letreiros agressivos, a desqualificação generalizada do sítio, a propaganda mais parece uma provocação.

Um lugar que é nosso, de quem? Os poucos residentes que vão resistindo à pressão do turismo de massas sentem na pele que Sintra é cada vez menos sua. O que, aliás, o presidente da câmara faz questão de acentuar quando responde a críticas e reclamações dos munícipes acusando-os de quererem ser donos de Sintra. Sintra é de todos. Mas, por este andar, perderá o seu encanto e não interessará a ninguém.

Sintra, um lugar que é “deles"…

“O lugar que é nosso” é, na realidade, cada vez mais “deles”. É dos turistas, quantos mais melhor, com os inerentes atropelos à paisagem e ao espírito do lugar. É dos bandos de “tuk-tuks”, jipes e autocarros que entopem as ruas e poluem o ar. É dos promotores imobiliários que fazem coisas como a Gandarinha, a Quinta de Santo António ou o Vila Galé e outras novas construções e “reabilitações” desastrosas. É das empresas de actividades ditas de desporto-aventura e de todos os que exploram de forma agressiva o parque natural. É do alojamento hoteleiro em cada esquina, das lojas de quinquilharia para o turista, dos transportes para o turista, dos restaurantes e cafés para o turista.

E, antes de mais, Sintra é, sem dúvida, da câmara municipal, dos detentores do poder que, sob o discurso de transparência, de diálogo com a comunidade e de respeito pelo património que apregoam, o que mostram é opacidade, desprezo pelos problemas dos munícipes e insensibilidade àquilo que faz de Sintra um sítio único. E nem é preciso ser residente, o estado do sítio torna a propaganda da câmara ofensiva não só para os que vivem em Sintra como também para quem a visita em busca do espírito do lugar. Estamos fartos de sofrer o inferno em que se tornou viver em Sintra ou vir passear a Sintra. Um lugar que é nosso? Estão a gozar?

Uma responsabilidade que é de todos

Como tantos outros sítios de Património Mundial, Sintra tem de ser protegida dos efeitos predadores do turismo de massas e da especulação, para que possa ser usufruída, valorizada e legada às próximas gerações naquilo que tem de exclusivo: uma simbiose única entre a natureza e os monumentos, as pessoas e as suas casas. Foi essa harmonia entre a natureza e a intervenção humana o principal fundamento da inscrição da Paisagem Cultural de Sintra como Património da Humanidade. Como alertava a UNESCO em 1995, a sua identidade é frágil e vulnerável a métodos negligentes e insensíveis de gestão e de uso do território. Hoje, 27 anos depois, Sintra precisa urgentemente de uma gestão eficaz que garanta a sua integridade como património vivo e trave o negócio do turismo de massas, o qual, como todos sabemos, acabará fatalmente por matar a galinha dos ovos de ouro.

É óbvio que o turismo é muito importante para Sintra mas é preciso ver mais longe, aprender com as experiências boas e más de outros sítios de Património Mundial. Às entidades responsáveis pela gestão do bem universal de valor excepcional - a câmara, a DGPC, o ICNF, a APA, a PSML, o Turismo de Portugal -, cabe a responsabilidade de preservar Sintra, em articulação com a comunidade e outras partes interessadas. Só uma visão de futuro, que integre o ambiente, a cultura, a sociedade, a economia, pode evitar que Sintra se torne em mais um parque de diversões sem vida própria. Todos sabemos que é uma tarefa complexa que requer vontade política e competência na administração do território. Mas é preciso pôr mãos à obra, antes que seja tarde demais.

Não chega a retórica oficial de defesa do património quando o que se vê na prática é a degradação da paisagem, da qualidade de vida e, também, inevitavelmente, da experiência dos visitantes. Contrariar a monocultura do turismo, dinamizar outras actividades consentâneas com as características do lugar, introduzir regulamentos e mecanismos que defendam eficazmente o património nas suas múltiplas dimensões, incentivar o arrendamento permanente, criar um sistema de transportes e de gestão de trânsito adequados, são alguns dos desafios estratégicos que se colocam a Sintra. É isso que os sintrenses e os amantes de Sintra exigem, não só da câmara como dos organismos centrais da administração pública.

Só assim, Sintra poderá continuar a ser um lugar que é nosso, dos que aqui vivem, dos que a visitam, hoje e no futuro, sem demagogias nem jogos de palavras.

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