Fertilizar o deserto dos Himalaias: haverá lugares “errados” para plantar árvores?

Os moradores da aldeia de Chushul plantaram recentemente 150.000 árvores num deserto frio entre a Índia e a China, na esperança de tornar fértil uma zona improdutiva. Especialistas alertam para o risco de criar florestas em ecossistemas onde nunca houve este tipo de vegetação.

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Moradores plantaram árvores na vila de Chushul, que fica a 4267 metros acima do nível do mar, um deserto frio entre a Índia e a China Go Green Go Organic

Enquanto observa os vizinhos a regar as dezenas de milhares de plântulas de árvores que plantaram numa vila no Himalaias há alguns meses, Gyan Thinlay anima-se a transformar este pedaço de puro deserto num habitat exuberante para insectos e aves.

A vila de Chushul fica a 4267 metros acima do nível do mar, na região de Ladakh, um deserto frio entre a Índia e a China. Ali, menos de 10 centímetros de chuva anual e variações extremas de temperatura sazonais dificultam o cultivo.

Mas isso não desencorajou os moradores a plantar em Junho cerca de 150.000 árvores –​ principalmente salgueiros, espinheiros e tamargueiras –, no âmbito de um projecto que tem como objectivo o combate à poluição do ar, o aumento da biodiversidade e a criação de novas fontes de rendimento para os moradores que, historicamente, dependem da pecuária.

“Tudo o que vemos ao nosso redor são montanhas estéreis. Agora estamos ansiosos para ver vegetação também”, disse Thinlay, um monge budista que supervisiona a iniciativa como vice-presidente da Chushul Go Green Go Organic, a organização sem fins lucrativos que impulsiona o projecto de fertilizar os solos da aldeia.

“As árvores também fornecerão forragem aos agricultores para o gado”, afirmou Thinlay à Thomson Reuters Foundation.

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O monge budista Gyan Thinlay supervisiona a iniciativa Go Green Go Organic, que pretende fertilizar os solos desérticos de uma aldeia nos Himalaias Go Green Go Organic

Empresas, governos e grupos ambientalistas estão a promover e adoptar a plantação de árvores numa tentativa de combater o aumento das temperaturas e diminuir os impactos das mudanças climáticas, à medida que as florestas extraem do ar o carbono que aquece o clima, capturam e armazenam água no solo e fornecem sombra para culturas e gado.

Contudo, alguns ecologistas alertam que a criação “irracional” de florestas em áreas onde não cresceriam naturalmente pode danificar ecossistemas que já são, por si só, frágeis e únicos.

“Plantar árvores em desertos pode ser tão prejudicial quanto cortar árvores em florestas”, disse Abi Tamim Vanak, director interino do centro para a concepção de políticas do Ashoka Trust for Research in Ecology and the Environment (ATREE) em Bangalore, na Índia.

Plantas nativas e animais selvagens, como os famosos leopardos-da-neve e as ovelhas-azuis de Ladakh, não estão adaptados aos ecossistemas florestais, observou Vanak.

“A criação de plantações, especialmente em áreas onde as pessoas não residem, pode prejudicar os habitats nativos e torná-los inadequados para a vida selvagem”, afirmou Vanak.

Árvores “roubam” água?

Na Índia, o rápido desenvolvimento está a intensificar o desmatamento, um dos principais impulsionadores da mudança climática.

A mineração, bem como a construção de estradas, projectos hidreléctricos e outras infra-estruturas, consumiu um total de 554 quilómetros quadrados de floresta no país nos últimos três anos, segundo dados do governo.

No frio deserto de Ladakh, e noutras partes do Sul da Ásia, as mudanças climáticas estão a atrapalhar os cronogramas agrícolas e a ampliar os riscos de inundações.

“Os glaciares estão a derreter rapidamente, enquanto os padrões de chuva e neve sofreram mudanças, com eventos climáticos extremos como chuvas mais frequentes”, disse Mukhtar Ahmad, cientista do Departamento Meteorológico da Índia, acrescentando que é difícil saber quanto deste aumento pode ser atribuído às mudanças climáticas.

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A vila de Chushul fica a 4267 metros acima do nível do mar, na região de Ladakh, um deserto frio entre a Índia e a China Go Green Go Organic

Projectos de plantação de árvores são relativamente novos para as comunidades do deserto frio de Ladakh.

Há apenas seis anos, o líder budista tibetano Drikung Kyabgon Chetsang Rinpoche começou a encorajar as pessoas a criar plantações. E também a armazenar água do derretimento ds glaciares não só para ajudar a reduzir as emissões de carbono causadas pelo aumento do turismo na área, mas também para produzir mais alimentos e ganhar dinheiro fornecendo madeira para a indústria da construção, afirmou o vereador de Chushul, Konchok Stanzin.

Aldeias noutras partes do seu círculo eleitoral também têm estado a estabelecer florestas no deserto nos últimos dois ou três anos, acrescentou.

As árvores ainda são jovens –​ mas assim que amadurecerem “os aldeões esperam que sejam uma importante fonte de forragem para ovelhas, cabras e outros animais, além de fornecerem vegetação”, disse Stanzin.

Vanak, da ATREE, enfatizou que o cultivo de árvores requer muita água, por isso plantá-las em ambientes que não são naturais para estas espécies pode tornar as áreas que já sofrem com stress hídrico ainda mais secas.

“Na verdade, as árvores nos lugares errados podem ‘roubar’ água de arbustos e ervas adaptados ao deserto e superá-los”, disse Vanak.

Um relatório de um grupo de cientistas europeus, publicado em Maio na revista Nature, concluiu que, embora a expansão da cobertura arbórea em grande escala possa aumentar a disponibilidade de água até 6% em algumas regiões, pode fazer com que o abastecimento de água noutras caia em quase 40%.

Além de potencialmente tirar água do gado e da vida selvagem, plantar árvores em ecossistemas desérticos até pode exacerbar as mudanças climáticas, disse Forrest Fleischman, professor associado do Departamento de Recursos Florestais da Universidade do Minnesota, nos Estados Unidos.

Quando as árvores que foram plantadas em lugares como a savana africana são destruídas por incêndios ou grandes animais, como elefantes, elas libertam mais carbono na atmosfera do que se tivessem ficado no subsolo, explicou.

Em vez disso, “evitar o desmatamento, melhorar a gestão florestal e proteger pastagens, turfeiras e matagais da conversão do uso da terra deve ser a prioridade”, disse Fleischman por email.

Stanzin garante que irrigar a plantação em Chushul não teve efeito negativo no abastecimento de água da área. De Junho a Outubro, os aldeões usam água dos glaciares derretidos e no resto do ano extraem água subterrânea usando bombas movidas a energia solar, esclareceu.

“Acreditamos que [o projecto] aumentará o lençol freático, pois a água é usada apenas em torno desta terra e acaba por ser absorvida aqui também”, acrescentou.

Danificar o deserto

Jigmet Takpa, secretário adjunto do Ministério do Ambiente da Índia, disse que as preocupações com o deserto fértil são exageradas. “Se plantamos árvores em um ou dois quilómetros quadrados de 57.000 quilómetros quadrados, como isso pode danificar o deserto?”, questionou o responsável.

Em Chushul, os alertas não preocuparam Stanzin Dolker enquanto cuidava das árvores recém-plantadas juntamente com outros aldeões. O mais importante para ela é a esperança de que a floresta que criaram traga plantas e animais selvagens para uma terra que foi estéril durante toda uma vida.

“Vamos garantir que cada uma dessas plântulas se transforme numa árvore. Esta é a nossa determinação”, garantiu Dolker.

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