Proprietário português do navio São José, naufragado em 1794, fez fortuna a vender escravos

História do primeiro navio de tráfico de escravos a ser descoberto e estudado ajuda a perceber como Portugal foi, durante quase cinco séculos, a nação mais implicada no comércio negreiro do Atlântico, defende a investigadora Raquel Machaqueiro.

Foto
Mergulhadores investigam destroços do São José MUSEU IZIKO

José António Pereira, proprietário do navio São José, que naufragou em 1794 ao largo do Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, levando à morte mais de 200 pessoas escravizadas, construiu a sua fortuna à custa do comércio de escravos, revela uma investigação académica de Raquel Machaqueiro.

Descoberto há mais de 30 anos por caçadores de tesouros, o São José foi identificado como navio de tráfico de escravos em 2015 pelo projecto internacional Slave Wrecks (Naufrágios de Escravos), que reúne múltiplas instituições mundiais, desde o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana do Smithsonian, em Washington D.C., nos Estados Unidos da América, aos Museus Iziko da África do Sul, entre outros.

De seu nome completo São José Paquete de África, era propriedade do português José António Pereira, e é hoje possível saber-se que partiu da Ilha de Moçambique, a 3 de Dezembro de 1794, comandado por um irmão do mercador, Manuel João Pereira, e que se dirigia ao Maranhão, no Brasil, com 512 moçambicanos cativos a bordo. Mas nunca chegou ao destino, já que foi apanhado por uma tempestade perto da Cidade do Cabo, na África do Sul, e naufragou no dia 27 do mesmo mês, a cem metros da costa.

O site do Slave Wrecks Project adianta ainda que tripulação foi toda salva, mas que, da “mercadoria” – os 512 escravos a bordo –​, só 300 terão sobrevivido ao naufrágio, tendo sido posteriormente vendidos.

Muitos naufrágios de navios que levavam escravos a bordo estão hoje documentados, mas o que distingue o São José é ser o primeiro cujos destroços foram efectivamente encontrados e puderam ser estudados.

De acordo com Raquel Machaqueiro, investigadora de pós-doutoramento em Arqueologia Pública na Universidade de George Washington, nos Estados Unidos, e também ligada ao Clube História e Acervo Português da Actividade Seguradora (CHAPAS), José António Pereira “era um mercador muito rico da cidade de Lisboa que, tal como outros mercadores, estava envolvido no comércio de escravos”.

Apesar de estar quase ausente dos registos históricos, Pereira –​ que ainda hoje é evocado na toponímia lisboeta, numa travessa de percurso sinuoso que vai da Avenida 24 de Julho à Rua das Janelas Verdes – “começou por ser capitão de navios, tornando-se rapidamente proprietário”, como explicou Machaqueiro, que apresentou em Lisboa, num simpósio em torno do navio São José organizado em Maio pelo Slave Wrecks Project e pelo Museu de Lisboa, a comunicação José António Pereira: Negociante ou Esclavagista? Esquecimento na Escrita da História e a Questão do Destino do São José na Memória Pública Portuguesa.

O mercador português transportou escravos, nos seus navios, durante mais de duas décadas, de portos do Norte da Europa, de Moçambique ou de São Tomé até Montevideu e Buenos Aires, entre outros.

Uma história esquecida

“Os registos mostram que Pereira, entre outros comerciantes ricos de Lisboa, tinha relações muito próximas com a Coroa portuguesa. Beneficiou de isenções fiscais, no transporte de escravos para o Pará, correspondia-se em termos amigáveis com muitos governadores e, em várias ocasiões, pressionou com sucesso as autoridades na defesa dos seus interesses comerciais”, disse Raquel Machaqueiro.

De acordo com a investigadora, precisamente no ano em que o São José se afundou, José António Pereira pediu à Coroa que lhe fosse atribuído um título da Ordem de Cristo, com base no seu trabalho enquanto comerciante de escravos. A Coroa assentiu um ano depois.

“Em que é que a trajectória individual deste mercador ajuda? Por que são estes elementos biográficos significativos? A rede complexa de mercadores, investidores, credores, Igreja e autoridades em torno das actividades de Pereira demonstra que o comércio de escravos era não apenas um empreendimento global que se estendia bem para lá do comércio triangular tradicional, mas que estava interligado e integrado no comércio global”, acrescentou Machaqueiro.

Segundo a apresentação da investigadora no simpósio de Maio, o “envolvimento directo da Coroa” e a sua “dependência do capital, que mercadores como Pereira podiam providenciar”, justificam que uma mais aprofundada investigação seja levada a cabo em relação ao peso do comércio de escravos na riqueza nacional portuguesa.

“Dado que alguns dos mercadores e comerciantes de escravos a quem José António Pereira estava ligado se especializaram mais tarde em financiar e segurar empreendimentos esclavagistas, em vez de participarem enquanto proprietários, a pergunta sobre se e como o comércio de escravos moldou a economia portuguesa e o sistema financeiro requer respostas que estão indisponíveis neste momento na historiografia portuguesa”, salientou.

Raquel Machaqueiro enfatizou que o facto de se apagar esta componente da História de Portugal impede o reconhecimento de “três factos simples: que Portugal foi a nação mais implicada no comércio de escravos no Atlântico como um todo; que Portugal esteve [nele] envolvido durante quase cinco séculos; e que Portugal foi instrumental, quer no primeiro quer no último capítulo do comércio de escravos”.

Em 2019, um projecto da revista do jornal The New York Times, intitulado apenas 1619, visou assinalar os 400 anos do começo da escravatura no território que viria a ser o dos Estados Unidos. Esse projecto começava com o seguinte parágrafo: “Em Agosto de 1619, um navio apareceu no horizonte, perto de Point Comfort, um porto costeiro na colónia inglesa da Virgínia. Transportava mais de 20 africanos escravizados, que foram vendidos aos colonos. Nenhum aspecto do país que se viria a formar aqui ficou intocado pelos anos de escravatura que se seguiram.”

Esse navio, o São João Baptista, era português e vinha de Angola.

Slave Wrecks desafia Portugal

O coordenador internacional do Slave Wrecks Project, Stephen Lubkemann, diz que o momento actual é uma oportunidade para que Portugal tome a liderança, a nível europeu, na investigação sobre tráfico de escravos, tendo em conta o seu papel histórico.

Em entrevista à agência Lusa, Lubkemann lembrou que, em 2023, a Sociedade internacional de Arqueologia Histórica vai organizar a sua conferência anual em Lisboa, naquela que será a primeira vez que o evento acontece na Europa continental (em 2005 e 2013 deu-se no Reino Unido).

“Vamos organizar lá, nessa altura, uma série de painéis de pesquisadores da rede internacional e também de Portugal”, afirmou o arqueólogo marítimo e co-fundador do projecto internacional Slave Wrecks, uma rede que reúne investigadores de múltiplos países para estudar o tráfico de escravos a nível mundial, tendo como um dos principais destaques a descoberta do São José. Os destroços do navio negreiro português foram classificados em 2018 como património nacional da África do Sul.

O objectivo da conferência em Lisboa será “mobilizar o interesse, quer académico quer público, à volta desta temática, perceber um pouco melhor o seu papel dentro das correntes principais da História”, com o propósito de vir a “organizar um simpósio sobre o tráfico negreiro e memória social ou pública e trazer alguns interlocutores de outros museus, por exemplo de Liverpool, França, Estados Unidos e outros que estão a re-imaginar como é que se conta esta história ao público”.

“O tráfico de escravos transatlântico foi a maior migração forçada de pessoas na história do planeta”, recorda a página do Slave Wrecks Project. “Desde 1400, mais de 12 milhões de africanos foram capturados e traficados pelo mundo Atlântico. Por altura de 1700, sete milhões de africanos haviam sido traficados para as Américas”.

Lubkemann frisou que é “uma grande oportunidade” para “ver se Portugal e a comunidade de investigação portuguesa, a comunidade de pessoas ligadas a questões do património, à memória social, querem tomar um papel de liderança no sentido de levar por diante este tipo de trabalho na Europa”.

O investigador da Universidade de George Washington ressalvou que a “comunidade de arqueologia subaquática [portuguesa] é muito bem conhecida há muito tempo”, mas não tem abordado o assunto do tráfico de escravos.

“Vamos examinar isso, abrir essas conversas e ver onde é que vai dar”, disse ainda Stephen Lubkemann, sublinhando que têm falado com investigadores em Portugal sobre se não estará “na hora de um dos países europeus mais envolvidos nesta história se tornar ponta de lança” no estudo do tema.

O investigador reconheceu que o despertar para a temática do tráfico de escravos é um fenómeno recente, pelo menos nos Estados Unidos, onde esteve algo “esquecido” durante muito tempo, e que se intensificou na sequência de movimentos como o Black Lives Matter.

“É uma temática difícil, que exige a cada nação, a cada protagonista, dar uma vista de olhos muito a fundo num espelho histórico que não é aquele que mais se quer celebrar. Mas há razões importantes para olhar para o espelho e vê-lo na sua totalidade”, declarou, realçando que o momento actual é “encorajador”, dado o muito interesse gerado junto da comunidade estudantil.

A conferência internacional da Sociedade de Arqueologia Histórica vai acontecer em Lisboa, entre os dias 4 e 7 de Janeiro de 2023, subordinada ao tema Revisitando Arqueologias Globais. O prazo para submissão de artigos terminou a 15 de Julho.

Sugerir correcção
Ler 18 comentários