O Serviço Nacional de Saúde que nós queremos em Portugal
Se queremos melhor saúde, teremos de ter mais investimento, e se queremos melhor SNS, teremos de ter mais investimento público. A solução que o Governo encontrou é a antítese.
Durante muito tempo havia hospitais e alguns poucos médicos que atendiam os doentes que os procuravam nos seus consultórios. Entretanto, assumimos a saúde como responsabilidade social coletiva e criamos o Serviço Nacional de Saúde (SNS) como garante desse direito. Passou a ser possível que qualquer cidadão em Portugal tivesse acesso aos cuidados de saúde de que necessita não apenas nos hospitais, por natureza mais distantes, mas em proximidade, com a instalação dos centros de saúde dos Cuidados de Saúde Primários.
Percebemos que cuidados de proximidade não são cuidados simplificados nem cuidados desresponsabilizados e desenvolvemos especialistas capazes de cuidar da pessoa como um todo, ao longo do tempo, independentemente do estado de saúde ou das doenças que apresenta, enquadrando-a no seu ambiente familiar e comunitário, que resolva uma ampla variedade de situações e que funcione como a charneira do sistema entre o exterior onde todos vivemos e os serviços de saúde a que recorremos de vez em quando. Este médico é o especialista em Medicina Geral e Familiar, também conhecido por médico de família.
Passamos de uma taxa de mortalidade infantil de 55,5 ‰ em 1970 para 2,4 ‰ em 2021, de uma esperança média de vida à nascença de 67,1 para 80,7 anos e aos 65 anos de 13,5 para 19,4 anos. E maior seria a diferença se não tivéssemos vivido a pandemia com a desorganização que justificou na área da saúde, primeiro pela necessidade de resposta à ameaça eminente, depois pela inércia em perceber a evolução do contexto e atuar em conformidade.
O acesso foi o aspeto mais afetado. Já vinham de trás a suborçamentação crónica do SNS, os congestionamentos nos picos de afluência e a resposta insuficiente da rede de referenciação hospitalar. Com a pandemia, todos sentiram que o seu médico de família não estava lá para si, apesar de estar efetivamente lá e em horários alargados que se prolongavam pela madrugada, fins de semana e feriados, mas não como era habitual.
Finda a pandemia, a situação do SNS é dramática. Verifica-se cansaço nos profissionais pelos horários prolongados (cerca de 7,5 milhões de horas extra nos médicos em 2021), pelos vencimentos ridiculamente baixos, pela desvalorização da carreira, pela colocação de profissionais sem regras claras nos contratos individuais de trabalho, pelas chefias designadas politicamente e não pelo mérito, pelos sistemas de avaliação desajustados do perfil profissional, pelas equipas mal dimensionadas, pela saída dos médicos reformados que não foi devidamente acautelada, entre outros, numa desorganização que ainda não reverteu completamente.
Estes problemas não são só dos médicos. Todos nós, enquanto utentes do SNS, ficamos prejudicados. E prejuízo em saúde significa doença, sofrimento e morte.
A solução é colocar a saúde como um investimento do país e não como uma despesa que onera o Orçamento do Estado. Em Portugal, a saúde custa 1982euros por habitante (Eurostar, 2019), menos 36% do que a média da União Europeia, mas a proporção suportada diretamente pelos cidadãos é 39% contra os 20% na média da UE27. Pagamos menos pela saúde, mas mais do nosso bolso. Se queremos melhor saúde, teremos de ter mais investimento, e se queremos melhor SNS, teremos de ter mais investimento público.
A solução que o Governo encontrou é a antítese. O Orçamento do Estado de 2022 pretende preencher as lacunas do sistema pela contratação de médicos sem especialidade, em contratos precários discricionariamente dependentes da tutela do SNS, condenando uma parte dos portugueses a terem acesso a uma medicina de qualidade inferior, sem lhes garantir a capacidade de escolha ou sequer de reserva, como se fossem cidadãos de segunda.
Enquanto médico de família sinto-me inconformado com esta decisão errada e potencialmente comprometedora dos níveis de saúde que atingimos em Portugal. Enquanto cidadão sinto-me traído por uma decisão que pode comprometer a qualidade da assistência médica a que tenho direito quando me dirijo ao SNS que pago com os meus impostos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico