O (i)mediatismo anónimo em ciência

A necessidade de um envolvimento maior e mais eficaz da comunicação de ciência tem de passar por um maior impacto em diferentes setores da sociedade, que não utilize só apostas focadas nas mesmas instituições e nos mesmos públicos, que já estão “convertidos”. Acabamos numa bolha em circuito fechado.

Há muitos desafios em ciência, mas o principal é sempre o mesmo, e dele emanam os restantes: a falta de visibilidade que resulta na necessidade constante de justificar a sua importância. Sem isso dificilmente haverá investimento, organização e, até, escrutínio. Dir-me-ão que noutras áreas muito reconhecidas publicamente, e onde há clara noção de que existem problemas estruturais, nada acontece em termos de reformas. Pode ser verdade, mas ao menos há consciência de ser preciso fazer alguma coisa; em ciência nem isso. Mesmo após uma pandemia em que nunca foi tão óbvia a sua importância, e a ciência funcionou (muito bem) em condições que nunca podiam ser as ideais, os programas que se apresentaram às recentes eleições legislativas, com honrosas exceções, ou mal a referiram, ou focaram apenas alguns aspetos (importantes, mas soltos) e repetiram generalidades.

Claro que outras considerações seriam possíveis. Uma, habitual, é notar a falta de compreensão quanto à importância da ciência projetada num futuro que, por natureza, nunca se pode definir com exatidão, porque a incerteza faz parte integral da sua matriz. Algo que tende cada vez mais a não ser o caso, com os investigadores a serem estimulados a descobrir pormenores do que, em grande medida, já sabem, de modo a cumprirem indicadores de curto prazo, o que é obviamente preocupante (e a três anos o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] é curto prazo, para não irmos mais longe). A outra, talvez menos óbvia, é que muitas vezes a ciência se tende a confundir com temas gerais de economia, trabalho, ambiente ou saúde, no qual se perde perante necessidades vistas como (mais) imediatas, e claramente reconhecíveis.

Seja como for, se permanecermos nesta senda continuaremos a ser, com as habituais exceções, exportadores de talentos, e importadores de produtos baseados no conhecimento que poderíamos perfeitamente ajudar a produzir, com as mais-valias associadas. Um país que continua a fazer excelentes diagnósticos, mas raramente atua sobre eles.

A necessidade de um envolvimento maior e, sobretudo, mais eficaz da comunicação de ciência (que não é uma atividade amadora sobre a qual qualquer um pode opinar, mas uma ciência em si mesma) é, desse ponto de vista, evidente. E tem de passar por um maior impacto em diferentes setores da sociedade, e não só utilizando apostas focadas nas mesmas instituições e interagindo sempre com os mesmos públicos. As primeiras têm o seu espaço muito fixo em termos de estratégias, os segundos têm acesso privilegiado constante e estão, por maioria de razão, já “convertidos”.

Depois de uma fase de implementação que gera bons resultados, acabamos numa bolha em circuito fechado (o atual “circuito Ciência Viva”, se se quiser), também aqui urge dar um salto quântico, e não necessariamente único. Um mais completo (não é o mesmo do que “maior”) envolvimento dos cidadãos (incluindo políticos) na produção e aplicação de conhecimento que lhes importa e os afeta é um caminho importante, que merece atenção em si mesmo. Noutra perspetiva em Houston, we have a Narrative: Why Science Needs Story (2015), Randy Olson apoia-se num percurso único enquanto investigador (na área da biologia marinha), e depois realizador e consultor de filmes em Hollywood; discutindo as vantagens de usar estratégias de entretenimento de massas para fazer chegar uma mensagem científica (simplificada, mas correta) a públicos mais vastos, que nunca serão atraídos por ações clássicas de divulgação científica.

Claro que os riscos são conhecidos (e estiveram visíveis durante a pandemia): quer que a inevitável simplificação possa gerar uma sensação incorreta de simplismo, quer que os próprios investigadores que se envolverem sofrerem efeitos menos benignos. Algo que pode ter lugar ao nível das habituais pequenas invejas (idiotas, mas naturais) sobre quem tem acesso à comunicação social, mas também em termos dos problemas secundários, sérios e bem conhecidos, associados ao mediatismo. Por um lado, a exposição exagerada e a repetição de mensagens, por outro a inevitabilidade que ocorram erros (nomeadamente se se falar do que não se sabe); ambos clássicos de longa data noutras áreas mais mediáticas. Ou seja: cansaço e descredibilização, ambos maus, de maneiras diferentes.

E sobra ainda um fenómeno a que cientistas não estão imunes (porque quase ninguém está): a arrogância de quem fica “famoso”. Mas, com o devido respeito, quem nos dera a nós em ciência estarmos a discutir estes problemas relacionados com a abundância, com o qual outras áreas há muito se debatem. Dois exemplos concretos recentes foram, para mim, reveladores.

Desde logo as opiniões de comentadores profissionais à nomeação da ministra Elvira Fortunato (uma notável investigadora, a quem desejo tudo de bom nestas suas novas funções, como é óbvio), foram reduzidas, banais e condescendentes. O foco esteve sempre noutros lados (Economia, Finanças, Saúde, Justiça, Educação; ou as mulheres no Governo e a sucessão de António Costa). Podiam evitar falar do que não lhes interessa e não sabem, mas, lá está, que analista profissional ousa fazer tal coisa?

Noutra perspetiva, há um tempo (muito antes das eleições) vi um daqueles programas de Grande Entrevista em que a convidada única era uma das nossas cientistas mais mediáticas. É-o há anos, com trabalhos de excelência muito divulgados (não era a ministra). No entanto, o objetivo do programa era obter visões do mundo de diferentes perspetivas, não necessariamente focar o entrevistado em si. Mas, que diabo, tem de haver um mínimo de preparação.

A certa altura a entrevistada procurou (bem) desviar um pouco o rumo da conversa para a ciência, referindo que “na sua área” havia uma série de problemas específicos que urgia abordar. O entrevistador retorquiu, de forma imediata e espontânea: “e qual é a sua área?” Não estava a tentar uma contextualização para benefício dos espectadores; não sabia mesmo, nem me pareceu que lhe importasse. A entrevistada estava ali enquanto “Figura Notável e Premiada”, e isso era suficiente. Duvido que houvesse dificuldades similares com outros tipos de convidados (políticos, escritores, economistas, atores, cantores, desportistas), mesmo que fossem de um nível relativo muito inferior, por exemplo futebolistas dos distritais (embora nunca sejam entrevistados no mesmo contexto).

Em todas as áreas há mediatismos locais, no sentido em que membros de comunidades específicas se reconhecem entre si, e até podem fazer rankings informais de importância a diferentes níveis, por assim dizer. Na verdade, muitos na comunidade científica acham, ingenuamente, que esses rankings têm alguma expressão fora dela. Mas, se tinha algumas dúvidas quanto à falta de extrapolação desse mediatismo interno para um contexto mais vasto, fico esclarecido com estes exemplos. E sem isso duvido que passemos destas mesmas discussões cíclicas. A ciência até pode ter algum destaque, mas não o papel estruturante que deveria ter.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar