Vítimas acusam casal em Portugal de enganar benfeitores em vários países

Um casal que vive em Portugal aproveitou a crise humanitária da Ucrânia para burlar dinheiro a doadores através de iniciativas falsas para apoio de distribuição de bens, de adopção de animais e de retirada de refugiados.

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O casal terá criado contas falsas, nomeadamente no Facebook, para organizar eventos donativos falsos para desviar dinheiro Reuters/KAI PFAFFENBACH

As autoridades portuguesas estão a investigar um casal que vive em Portugal e que pede donativos para ajudar pessoas e animais na Ucrânia, depois de denúncias de burla, algumas das quais a Lusa teve acesso.

Pelo menos três pessoas, contactadas pela Lusa, acusaram um casal a viver em Portugal de burla, utilizando a crise humanitária na Ucrânia, país invadido pela Rússia em Fevereiro, um caso que, segundo a Procuradoria-Geral da República, já motivou a abertura de um processo.

A guerra mobilizou inúmeras organizações, dispostas a ajudar as pessoas e, mais tarde, os animais. No caso dos animais, várias organizações aproveitaram as redes sociais para apelar ao transporte e posterior adopção e foi neste contexto que o português Rui de Sousa e a ucraniana Alina Kozak terão actuado, oferecendo os seus préstimos para levar comida e medicamentos, pedindo donativos.

Debra Michaud vive em Chicago e alega ter recebido um contacto de Rui de Sousa, dizendo que iria partir para a Ucrânia numa missão humanitária de apoio a militares e que teria dez dias livres para ajudar animais.

Activista, Debra Michaud “estava em contacto com várias famílias, com um grande número de animais que precisavam de ser resgatados” e Rui de Sousa ter-lhe-á prometido ajudar “pessoas e animais fora de Mariupol”.

“Disse-me que faltavam-lhe apenas 1400 euros para poder fazer a viagem, pois tinha várias campanhas GoFundMe em curso, mas não estavam a angariar dinheiro suficientemente depressa. Então eu pensei: se eu lhe emprestar 1400 euros, e ele me reembolsar quando o financiamento chegar, ele pode partir agora, obter a insulina e os mantimentos necessários para o exército e depois ficar livre para ajudar estas famílias [com animais] que estão a implorar por ajuda”, explicou.

De desculpa em desculpa

Debra Michaud disse à Lusa que lhe enviou 1550 dólares através da plataforma de transferência Wise, dinheiro que seria destinado para o combustível que iria levar os três camiões com donativos à Ucrânia.

Os dias passaram e Rui de Sousa continuou a apelar aos donativos, o que levou Debra a desconfiar. “Mandei-lhe uma mensagem exasperada a perguntar porque estava ele a angariar dinheiro em vez de se fazer à estrada, se eu já tinha enviado o que ele disse que precisava”.

Segundo Michaud, Rui de Sousa teria apresentado várias desculpas — que estava primeiro na Ucrânia, depois na Polónia —, até que soube por alguém que ele estaria em Portugal.

“Naquele momento, apercebi-me que era um esquema e comecei a encontrar outras pessoas que também tinham sido enganadas por ele”, contou.

O casal terá criado vários grupos no Facebook — primeiro Soutal Nova e agora Slava UA — onde publicam fotografias, que se vão repetindo, de animais alegadamente a precisarem de ser resgatados, outros supostamente salvos e ainda de bens que, afirmam, foram adquiridos com os donativos reunidos.

Aline Kozak também criou a página Power of Peace, que se apresenta como “uma pequena organização, que fornece abrigo, apoio médico e distribuição de provisões para pessoas e animais”.

"Traficantes de cães"

Os nomes indicados na equipa da organização são Aline Kozak, Rui de Sousa e Józef Reba e o número do MBWay, para donativos, é o do telemóvel de Rui de Sousa, utilizado noutras páginas (Soutal Nova e Slava UA).

Rui de Sousa refuta as acusações e diz que o que pede é para fazer chegar à Ucrânia os bens que recolhe e diz-se vítima de ataques sem fundamento, os quais atribui a pessoas ligadas a situações ilegais, como tráfico de animais.

Sem especificar o montante até hoje reunido, alegando que assim que recebe um donativo gasta tudo a comprar bens para enviar, promete, em declarações à Lusa, levar a tribunal todos os que o acusam.

Ann Holvoet, uma belga que vive na Roménia, onde construiu um abrigo para cães vadios, ofereceu-se para acolher animais resgatados dos cenários de guerra na Ucrânia.

“As nossas equipas salvaram cães de toda a Ucrânia e entregámos toneladas de alimentos e mantimentos aos que ficaram”, disse à Lusa.

Nessa altura, Holvoet soube da existência de Alina Kozak e Rui de Sousa quando se apercebeu de que estes estavam indevidamente a utilizar na sua página do Facebook (Soutal Nova) fotografias das entregas de comida que a sua equipa, e uma outra, fizeram em Kharkhiv e Odessa.

Os dois estão a usar uma página da Laika Global Rescue — a organização que Ann Holvoet fundou — “para se promoverem, usando a bandeira da nossa organização, e a usar as redes sociais para denegrir os que realizam um trabalho sério, chamando-nos de traficantes de cães”.

“São criminosos, estão em Portugal enquanto fingem estar na Ucrânia”, acusou.

Queixa por burla

Em Portugal, Carlos Gomes, que trabalha na área da segurança e é o presidente da associação 1122, que presta formação técnica e apoio humanitário, envolveu-se na recolha de fundos para combustível, bens materiais e medicamentos a.

“A nossa missão era clara: apoio médico em zonas de refugiados, entrega de alimentos a uma unidade militar em Lviv, fraldas e produtos para crianças num orfanato e ração para animais. No regresso, trouxemos um casal com três cães”, disse à Lusa.

Enquanto preparava a missão e recolhia os fundos e meios recebeu a indicação de que Rui de Sousa estava a realizar acções do género e tentou um contacto, que não obteve qualquer resposta.

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Animais resgatados Tiago Lopes

“Só quando colocámos na nossa página o que angariámos, o que tínhamos e o que íamos fazer é que ele nos contactou a dizer que também estava interessado em ir na nossa caravana”, afirmou.

Por essa altura, adiantou, apercebeu-se que a página da Soutal Nova estava a publicar as imagens dos bens angariados pela associação 1122 e um apelo a donativos com o número da conta de Rui de Sousa.

“Eu contactei-o e disse que não podia estar a pedir ajuda humanitária para contas particulares e que ele tinha que justificar o que recebeu, pois as pessoas estavam a ficar muito incomodadas”, recorda, alegando que foi ignorado por Rui de Sousa.

“Quando fomos para a Ucrânia, cumprir a nossa missão, ele continuou a colocar imagens, inclusive da nossa partida, e a apelar a donativos para a sua conta pessoal”, disse.

Quando regressou da Ucrânia, Carlos Gomes apresentou queixa contra Rui de Sousa, por burla, na PJ de Aveiro.

Contactada pela Lusa, fonte da Procuradoria-Geral da República (PGR) informou que há um inquérito em investigação no DIAP Regional de Coimbra e que a informação recebida se reporta a factos susceptíveis de integrar o crime de burla. Há queixas noutros países, como os Estados Unidos, segundo informações recolhidas pela Lusa.

À Lusa, Rui de Sousa disse desconhecer qualquer investigação em curso e que nenhuma autoridade o contactou até ao momento.

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