@Torquemada

Se todos perdêssemos cinco segundos no lugar do outro antes de twittar furiosamente sem pensar, “a bolha” talvez pudesse ser um local mais saudável.

Torquemada; do not implore him for compassion
Torquemada; do not beg him for forgiveness
Torquemada; do not ask him for mercy
Let's face it, you can't Torquemada anything!

The Inquisition – Banda sonora do filme Uma louca história do Mundo (1981)

De quando em vez, nascem “casos” na rede social Twitter sobre os quais, de repente, saem debaixo de pedras almas impolutas prontas a atacar o pecador do momento, aproveitando o hype para aparecerem, comentarem tweets de pessoas com 300 mil seguidores, com bolinha azul, na esperança não sei de quê.

Há tempos, descobri que havia milhares de pessoas que jamais se atreveriam a ultrapassar os 120km/h em autoestrada, porque isso era coisa de assassinos – sim, dos que nem precisam que o Estado de Direito perca tempo a acusar, já que toda uma multidão de penalistas de bancada das redes sociais se ocupam de acusar, provar a culpa e condenar um qualquer pobre indivíduo que, ainda que nunca chegue a ser acusado ou que venha ser absolvido... Uma vez assassino/corrupto/o que seja, na internet, para sempre culpado.

No passado sábado voltei a deparar-me no Twitter com um reles tweet de alguém que se arvora de ser “Advogada” (com maiúscula) para afirmar algo como “venham eles!” quando a chamam a atenção para o facto de a história a que diz ter assistido e relata com requintes de malvadez, e as acusações que faz de alcoolismo relativamente a um outro cidadão, serem acusações graves e eventualmente passíveis de constituir um crime.

Esta é a primeira parte que me repugna da história – o relato reles e vil de quem não se coíbe de ir respondendo a comentários, onde acaba por ser humilhado por dezenas ou centenas de pessoas (fora os “trolls” que vinham apoiar e dizer que sim, que o fulano “X” era um bêbado, como se alguma vez tivessem privado com ele para saber...), cujo argumento consistia sempre na mesma premissa que seria algo como isto: “devias ter vergonha em expor esta situação publicamente. Se ele é alcoólico, então tem uma doença e, como tal, não deve ser exposta desta forma numa rede social. Porque não o tentaste ajudar? É indigno expor uma condição de saúde como é o alcoolismo desta forma.”

Daqui surgem vários problemas:

  1. Quem escreve era, até então, uma ilustre anónima no Twitter – com esta historieta, aproveitando-se da notoriedade do visado e criando o que sabia de antemão que viria a ser um “caso”, conseguiu ser o assunto do dia – até porque there's no such thing as bad publicity (P.T. Barnum);
  2. Claro que o visado não lhe deu o que queria: atenção, até porque mal seria que um cidadão, anónimo ou não, tivesse que vir prestar contas sobre se bebe, o que bebe, se é alcoólico ou deixa de ser porque uma qualquer pessoa acorda um dia e se lembra de o acusar de tal coisa;
  3. E eis aqui a parte que me mais me perturba: os carrapatos que acorreram a dizer todos o mesmo partindo de vários pressupostos que não fazem ideia se são verdade ou invenção de quem acusa, senão vejamos:

i) a história é verdadeira?
ii) mesmo que seja e “X” tenha bebido um whiskey como a pessoa diz ter visto, desde quando é que isso faz de alguém alcoólico?

E aqui aconteceu o fenómeno pelo qual comecei: toda a turba a atacou e não mais largou, mas partindo de uma falácia: para os revoltosos, os tweets dela só são vergonhosos porque ela expõe a doença de alcoolismo de “X” (que ninguém sabe ser verdadeira embora toda a gente tenha assumido como real, e daí retiraram a suposta conclusão) – Ou seja: [”X” é alcoólico, logo, doente, portanto, os tweets são vergonhosos por exporem publicamente a doença alheia] – falácia “ad ignorantiam”.

Entretanto, a pessoa que proferiu as acusações, após ter sido atacada por tanta gente, apagou os tweets. Terá tido vergonha, ou ter-se-á aplicado a velha máxima de que “se pensas que pensas, pensas mal. Quem pensa por ti é o Comité Central”?

Para terminar, e para que se perceba do que estamos a falar quando acusamos de alcoólico alguém que bebe um whiskey à hora que quiser ou vinho ao almoço ou ao jantar, um pequeno contexto julgo que ajudará aqueles que não fazem ideia do que falam.

Segundo a OMS, em 2019, o consumo de álcool no mundo, medido em álcool puro, por pessoas com 15 anos ou mais foi de 5,8 litros. Já na Europa, foi de 9,5 litros.

Selecionei uma série de países europeus sem recorrer aos extremos, mas abrangendo realidades bastante diferentes por motivos de políticas adotadas, de comportamentos de consumo, etc., que, infelizmente, o espaço disponível não me permite detalhar.

Em 2019, per capita, veja-se o que se consumiu, em álcool puro (considerando pessoas com 15 anos ou mais) nos seguintes países: 1) Alemanha – 12,79; 2) Lituânia – 12,78; 3) Espanha – 12,67; 4) França – 12,23; 5) Portugal – 12,09; 6) Estónia – 10,75; 7) Finlândia – 10,65; 8) Suécia – 9,04; 9) Noruega – 7,14.

Vejamos agora, relativamente aos mesmos países, dados atualizados a 2018, a percentagem de indivíduos com 15 anos ou mais com dependência do álcool: 1) Estónia – 5,5; 2) Suécia – 5,1; 3) Lituânia – 4,9; 4) Finlândia – 4,5; 5) Noruega – 4; 6) Alemanha – 3,5; 7) França – 3,3; 8) Portugal – 3; 9) Espanha – 0,7.

Vários fatores explicam e várias conclusões podem ser retiradas da análise destes dois conjuntos de dados a partir dos quais, à partida, poderíamos ser levados a crer que, nos países onde mais se bebe haveria uma maior tendência para o alcoolismo, mas não é esse o caso. Não podendo abordá-los aqui, recomendo a consulta, além da página da OMS, do site https://www.nordicalcohol.org/ com informação oficial sobre álcool nos países nórdicos e bálticos, onde é explicado o fenómeno acima.

Agora coloque-se no lugar do homem médio português. Em 2019 (dados mais recentes) terá bebido, em média, 12,09 litros de álcool puro, o que corresponde a cerca de 111 garrafas de vinho de 14,5% vol. de álcool num ano. A OMS prevê (em extrapolações com recurso a modelos matemáticos) que, em 2020, terá bebido 108,5 garrafas do mesmo tipo (11,8 litros de álcool puro) nesse ano e, em 2025, cerca de 101 garrafas (11 litros de álcool puro) nesse ano.

Surpreendido? Posto assim parece muito. E se alguém escrevesse sobre si numa rede social dizendo que o viu beber uma garrafa de vinho ao almoço/jantar e o acusasse de alcoolismo? Parecer-lhe-ia razoável? Agora imagine que, por cima, centenas de pessoas vinham acusar a pessoa de estar a expor uma sua doença – o alcoolismo – que o estimado leitor considera não ter, com base num diagnóstico feito por aquela pessoa que é Advogada e não médica e numa narrativa que não há como provar. Porventura, se todos perdêssemos cinco segundos no lugar do outro antes de twittar furiosamente sem pensar, “a bolha” talvez pudesse ser um local mais saudável.

E assim se passa um dia inteiro a escarafunchar a vida de um cidadão cujos direitos fundamentais à privacidade e à intimidade da vida privada parecem ser o Cubo de Rubik da populaça virtual que ali se junta.

Afinal, é fim de semana. Para quem tem estômago, é lidar. Amanhã ou depois será a vez de outro cair nas mãos da horda virtual que, por vezes, quando olho de repente, parece-me que não são muitos, é apenas um, e o username é @Torquemada.

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