A “contra-reforma” do SNS

A vulnerabilidade do nosso SNS surge quando os governos, não compreendendo a sociedade e a sua evolução no contexto de um Estado Social moderno, acabam por ficar prisioneiros das suas próprias propagandas.

Um recente artigo do Prof. Correia de Campos, publicado sob o título Reformas Estruturais, mereceu-me especial atenção. Exprime o pensamento de uma das pessoas com mais experiência governativa e académica, ideólogo do nosso SNS, com vasta obra na área da Saúde e dos poucos ex-ministros inovadores, ao lançar, em nome da sustentabilidade do sistema de saúde, as Parcerias Público-Privadas (PPP); ao iniciar a conceptualmente bem-sucedida reforma dos cuidados primários de saúde; e a reorganização dos serviços de urgência.

Estranho, pois, a sua fobia às reformas estruturais. Não deve ser por rendição, mas por sinal dos tempos, em que políticas “conservadoras” são eleitoralmente mais eficazes do que abanar conceitos e estruturas que foram capturadas por múltiplos interesses que prevalecem na sociedade portuguesa.

As reformas sérias e bondosas que agora exprime não passam de um conjunto de medidas, algumas com mais de vinte anos, que não conseguiu implementar e depois se perderam nos gabinetes do Ministério da Saúde. São bem a prova de que há uma cultura instalada e uma visão estática de Serviço Público.

Parte dos atos governativos do Prof. Correia de Campos esfumou-se no fio do tempo. As PPP deixaram de existir mercê de um furacão ideológico; mais de um milhão de portugueses ainda não têm médico de família; as listas de espera têm aumentado constantemente; os serviços de urgência continuam a ter um excesso de procura e, por isso, a acessibilidade ao SNS é cada vez mais difícil; os profissionais afastam-se do SNS, que, à míngua, convenciona de uma forma crescente à prestação privada. Cinco milhões de portugueses, pagando do seu bolso, aderem a seguros de saúde ou a subsistemas de saúde.

Em muitos indicadores vamos ficando para trás, em especial no que concerne a políticas de envelhecimento, saúde mental e saúde preventiva. O aumento da esperança média de vida e de doenças crónicas suscita novos modelos organizativos de cuidados, com equipas multidisciplinares, para não falar da digitalização da saúde só executável com modelos versáteis, abertos e autónomos - a que a rigidez de um SNS centralizado será incapaz de responder.

A universalidade e gratuitidade expressas na lei deram lugar a um sistema informalmente misto, de acesso desregulado, redundante e pouco eficaz. O nivelamento social através da saúde não está a passar de uma rampa deslizante, cada vez mais inclinada.

Compreendo a frustração de quem sonhou, como eu, por o bem-estar e as garantias sociais dos países nórdicos não terem florescido neste país. A culpa não reside nos indevidamente chamados utentes (equiparados a números), nos empresários da saúde ou nos profissionais, alguns transformados em fantasmas conspiratórios.

Ainda bem que o setor privado da saúde tem tido um papel marcante, estando cada cada vez mais presente num contexto insuficientemente regulado. Em número de hospitais já é maioritário. Não tardará que ultrapasse em procura o setor público. A liberdade de escolha é uma inevitabilidade presente em toda a Europa. Por isso, deveriam ser derrubados muros e todos os prestadores, públicos ou privados, integrados, não num Serviço Nacional de Saúde, mas num Sistema Nacional de Saúde, onde o Estado tenha fortes instrumentos de regulação.

A conclusão é óbvia. O nosso Sistema de Saúde necessita de outra resiliência para dar expressão aos seus fundamentos e finalidades; para garantir e regular, de forma equitativa, o direito à saúde.

A resiliência pressupõe que se conheça a sociedade onde nos inserimos e a sua dinâmica sociológica, cultural e económica. Os barcos não se afundam por causa da água onde navegam, mas devido à que está ou vem para dentro deles. A vulnerabilidade do nosso SNS surge quando os governos, não compreendendo a sociedade e a sua evolução no contexto de um Estado Social moderno, acabam por ficar prisioneiros das suas próprias propagandas.

A curta efetividade de algumas medidas que o Prof. Correia de Campos lançou e o panorama atual do SNS são a demonstração de que se tem navegado ao sabor das circunstâncias políticas, emitindo-se medidas efémeras que vão ruindo porque carecem de um enquadramento estruturante, dinâmico e voltado para o futuro. As reformas, para serem consistentes, têm mesmo que ser estruturais, senão esfumam-se na dinâmica da democracia.

Não me benzo nem evoco em vão o grande humanista que foi o dr. António Arnaut. Apenas pretendo evitar que um SNS que também ajudei a construir morra à míngua.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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