Lembras-te da Joan Didion, muito magrinha, e do John Dunne, morto no chão da sala

São jovens, talvez demasiado jovens para assumirem um compromisso tão antigo. Com tanto peso. Não têm casa, vão viver com os teus pais, e o dinheiro que guardam no banco dá para encher de moedas uma algibeira ou pouco mais, mas estão apaixonadas, não podem esperar. Querem casar; tu queres, mais do que tudo.

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Não é um dia como os outros. Esperaste anos por isto. Desde criança que quiseste que este dia se concretizasse. O vestido branco comprido, o véu elegante, ocultando parcialmente a expressão que trazes. Não vai ser como idealizaste porque o vestido é emprestado, já fez feliz outra noiva e isso não é suposto, dizem que dá azar, que o vestido devia ser só teu, por estrear, como deve ser um casamento. Não importa, ninguém sabe, a não ser tu e a mulher com quem vais casar.

A mulher com quem vais casar lamenta bastante não teres o vestido com que sempre sonhaste. O vestido agora não importa, está bom assim, estão bem assim. Em menos de uma hora será tua mulher. A tua companheira, aquela que esperas que te acompanhe até ao fim da vida. São jovens, talvez demasiado jovens para assumirem um compromisso tão antigo. Com tanto peso. Não têm casa, vão viver com os teus pais, e o dinheiro que guardam no banco dá para encher de moedas uma algibeira ou pouco mais, mas estão apaixonadas, não podem esperar. Querem casar; tu queres, mais do que tudo. Logo se vê onde vos leva o investimento a duas.

Não vês o casamento como um investimento, és ingénua. Casas por amor, sabes que já não está na moda, porém acreditas que é tudo aquilo que vos basta. Pronta ao espelho. És bonita. O sinal acima do lábio superior dá-te ares de Madonna mas és mais elegante e sabes disso. Sorris para o teu reflexo e orgulhas-te dos dentes pequenos e brancos, é um belo sorriso, uma jóia para manter. És pobre mas tens dentes bons para te poderes rir à vontade da miséria. Talvez não. Talvez a vida vos corra bem. Quem sabe?

Um dia, a tua mulher terá o seu próprio bar. Terão dinheiro, vão ser ainda mais felizes. Não que aches agora que isso seja possível, sentes que estás no clímax da felicidade e, muito provavelmente, no dia mais feliz da tua vida. São os teus últimos minutos sozinha, antes de seres uma mulher casada. Antes de começar a folia que só terminará depois da meia-noite, depois do copo d’água.

O telemóvel toca. No visor vês o nome da tua quase-quase mulher. Pensas que lhe deve estar a ser difícil aguentar a espera, anda há dias com uma ansiedade agonizante de te ver. Atendes. Do outro lado, silêncio. Esperas uns segundos. “Está tudo bem, querida?” Não te responde. Ainda te ris. “Estás a ser parva, não tem graça. Arrête!” Sai-te em francês, reminiscências de uma infância e adolescência de emigrante em França. Não responde. Parece chorar do outro lado da linha imaginária que liga os telefones uns aos outros. Talvez seja interferência o som que ouves. Tens um mau pressentimento.

Ao espelho, notas que o vestido emprestado tem uma nódoa pequenina e clara junto à cintura. Parece ovo. Hoje não é um dia como os outros. “Desculpa”, diz a mulher com quem vais casar, e desliga. Baixas o véu sobre o rosto. “Devia ser preto”, pensas. Imaginas os convidados à espera e aquilo que lhes vão dizer; não tu, tu não vais dizer nada a ninguém. Lembras-te da Joan Didion, muito magrinha, e do John Dunne, morto no chão da sala. “A vida muda rapidamente. A vida muda num instante.” Sabes que não tem nada que ver, mas eram uma referência para ti e para a mulher com quem vais ou ias casar. Pensas como é bizarro lembrarmo-nos de coisas que não conhecemos nem vimos, coisas que apenas lemos ou ouvimos alguém contar. Que a realidade também é uma coisa imaginada.

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