Yelena fotografou “uma carta de amor, uma ode a Odessa”

A ucraniana Yelena Yemchuk, residente nos EUA há várias décadas, dedicou quatro anos ao retrato de Odessa. O fotolivro que reúne esse trabalho, Odesa, faz homenagem à cidade que era conhecida, na era soviética, como "um lugar de liberdade habitado por proscritos e intelectuais". "Tudo em Odessa parece saído de um filme de Fellini, nunca estive noutro lugar assim."

©Yelena Yemchuk
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Durante a vigência da União Soviética, a cidade de Odessa era conhecida na Ucrânia como um lugar de liberdade "habitado por proscritos e intelectuais". "Em criança, pensava em Odessa como um lugar incrível, perigoso, selvagem, sempre associado a algo misterioso", refere a fotógrafa ucraniana Yelena Yemchuk em entrevista ao P3, a partir de Lisboa. 

"Vou começar pelo princípio", anuncia. "Eu nasci e cresci em Kiev. Quando eu tinha 11 anos, a minha família decidiu atravessar a 'cortina de ferro' e emigrar para os Estados Unidos. Abandonámos a Ucrânia em segredo, sabendo que não podíamos regressar, o que foi trágico e traumático para mim." Yelena era uma criança, mas garante que compreendia o contexto político e as implicações dessa mudança. "O que mais me custou foi deixar de ver a minha avó, com quem tinha uma ligação muito próxima."

O tempo passou e a Ucrânia tornou-se independente em 1991. Em 1996, Yelena regressou pela primeira vez a Kiev. Tinha 26 anos e o país vivia uma redefinição identitária. "Algo de belo estava a surgir, os jovens começavam a acordar para as artes, para a música. Foi um período muito interessante." Em simultâneo, Yelena desenvolvia a sua própria linguagem visual —​ algo que na Fotografia fazia desde os 14 anos, após a oferta de uma câmara fotográfica de 35mm como prenda de aniversário por parte do pai.

A primeira viagem a Odessa ocorreu em 2003. "Foi amor à primeira vista", admite Yelena. "Existe algo de selvagem em Odessa. Mas também algo de esquecido, como se tivesse sido preterida pela modernidade." A fotógrafa sentiu, durante essa primeira visita, que lhe "mostravam um lugar secreto". "Como se alguém me puxasse pelo braço, abrisse uma cortina e dissesse 'olha para esta cidade encantada, podes acreditar nela, ela existe e podes entrar'." Se Yelena "mantivesse os olhos e o coração abertos, talvez conseguisse ver e capturar essa magia".

Mais de dez anos passaram entre a primeira e a segunda visita. Em 2014, quando a fotógrafa se preparava para o regresso a Odessa, dá-se o estalar do conflito em Donetsk e a anexação da Crimeia pela Rússia. "Nesse Verão, tudo mudou." Em 2015, quando finalmente regressou e fotografou algumas das imagens que que dão corpo ao fotolivro Odesa, que será publicado em Maio de 2022 pela editora Gost, Yelena ouvia falar com frequência "dos jovens soldados que se voluntariavam para proteger a Ucrânia". "Consegui acesso aos campos de treino, aos jovens soldados, e foi assim que tudo começou", explica. "Se tivesse começado antes, esse conjunto de imagens de jovens militares nunca integraria projecto."

Após essa primeira investida fotográfica em Odessa, Yelena percebeu que queria afastar-se do tema da guerra e declarar, simplesmente, o seu amor pela cidade. "O que eu queria mesmo era contar a história daquele lugar e dos seus habitantes. O projecto seria, assim, uma carta de amor. Uma ode a Odessa." Regressou todos os anos, várias vezes por ano, até 2019, quando deu por terminado o projecto.

"Tudo em Odessa parece pertencer a um filme de Fellini, nunca estive noutro lugar assim", descreve a fotógrafa. "Para todos os lugares onde olhava sentia a presença de uma espécie de absurdo alegre com laivos de negritude. Nas pessoas, nas situações, até nos objectos sentia essa presença. Eu nunca fotografo natureza morta, fotografo sobretudo pessoas, e em Odessa dava por mim a fotografar objectos porque até os objectos pareciam ter personalidade." As pessoas, descreve Yelena, são "inteligentes, carismáticas, engraçadas". "Vivem a vida por inteiro, com uma ligeireza que é incomum encontrar-se na Europa de Leste." A sua interacção com as pessoas foi "tão real e pura" que se tornou o tema central da sua ode fotográfica. "Quando conhecia as pessoas, a sua reacção era sempre gentil, elas confiavam em mim. Não podia ignorar isso."

Yelena fotografou nos mais variados contextos: nas ruas, nas praias, no interior das casas, das escolas de artes, sempre de mira apontada aos mais jovens. "Uma das imagens de marca de Odessa sãos os meninos e meninas, alunos da academia militar, que se passeiam pela cidade vestidos com uniformes azuis brancos da Marinha", descreve. "Estão constantemente a acontecer coisas engraçadas, é uma cidade cheia de humor  negro, muitas vezes."

Será que esse humor irá sobreviver ao trauma de guerra? "A história da Ucrânia é muito turbulenta", frisa Yelena. "E muita dessa turbulência não está muito afastada no tempo. O meu avô morreu durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Nós, ucranianos, passámos pelo Comunismo, pelo Nazismo, por ciclos de tragédia sobre tragédia. Sentia que seguíamos numa boa direcção até sermos interrompidos por esta guerra. Acredito que todos os ucranianos ficarão diferentes depois disto."

Emocionada, Yelena partilha que sente, à semelhança de outros ucranianos exilados ou emigrados, culpa por estar ausente do país num momento que considera de extrema importância para o futuro. "À distância, faço o que posso para ajudar: recolho donativos, doo parte do meu trabalho ou das receitas de venda a organizações humanitárias, ajudo a conectar pessoas para promover a entreajuda." Parte da receita obtida a partir da venda de Odesa reverterá a favor da organização não-governamental Monstrov, que intervém directamente no terreno, em Odessa. "Algo que nós, ucranianos, dizemos uns aos outros, nesta fase, é que um dia iremos reerguer-nos e que, quando esse dia chegar, ficaremos melhor do que nunca."

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