O PCP e o anticomunismo

“Opor-se ao PCP” em todos ou em alguns temas não é fatalmente, como o partido propaga, ser-se anticomunista.

Ao chamar-lhe “fábrica de cristãos-novos”, António José Saraiva desenvolveu em Inquisição e Cristãos-Novos – publicado em 1969, mas saído em edição portuguesa apenas em 1985 – uma explicação sobre o que julgou ser uma das mais notórias e funestas consequências da Inquisição portuguesa. Considerou aí que a máquina trituradora por esta montada, ao “descobrir” judeus conversos em toda a parte, perseguindo e condenando por mais de dois séculos muitas pessoas que de modo algum o eram, não só ampliou muito o número dos perseguidos e sentenciados, como, por esta via, disseminou entre a população “cristã-velha” o medo e o ódio ao judeu, enraizando um sentimento antissemita preservado mesmo após o fim da instituição.

Na construção de uma mancha infamante, algo de similar ocorreu durante o Estado Novo com o Partido Comunista Português e os seus militantes, apontados em A Revolução de Maio, de António Lopes Ribeiro, o principal filme de propaganda do regime estreado em 1937, como os seus únicos verdadeiros inimigos. A obsessão anticomunista, aí expressa de forma simbólica no combate entre a bandeira nacional e a vermelha com a foice e o martelo, foi preservada ao longo da ditadura com a intenção de exagerar os “perigos” do comunismo e de disseminar o medo da sua hipotética vitória. Apesar da duríssima repressão, que afetou os seus quadros responsáveis e os militantes mais corajosos, quase o aniquilando em dois ou três momentos críticos, o PCP era o único partido ilegal que persistia no combate antirregime, hegemonizando pelo esforço e tenacidade, pelo menos até aos meados da década de 1960, os combates da oposição. Daí o pendor anticomunista da intervenção doutrinária do Estado.

Todavia, no seu combate pela preservação de uma autoridade incontestada, não bastava ao regime salazarista combater o partido e esforçar-se por desqualificá-lo em termos públicos. Era preciso também fazer com que os seus diversos aliados no combate antifascista fossem igualmente desclassificados, de modo a impedir a construção de uma frente alargada de resistência. A designação como “comunista” de todo o opositor, viesse este de onde viesse, passou então a ser usada como forma de desqualificação social e de exclusão política, transitando para o “senso comum” com um sentido que tendia a identificar quem recebesse o estigma como criminoso passível de castigo. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o impacto da Guerra Fria dilataria, aliás, essa estratégia. Desta forma, o regime funcionou também como “fábrica de comunistas”, ampliando a sua presença para além da realidade dos números e fazendo mesmo com que muitos cidadãos acabassem por tornar-se militantes.

Em democracia, e em particular nos anos mais recentes, a memória desse anticomunismo tem sido, paradoxalmente, utilizada como arma usada pelo PCP. Aplicada com frequência, como vitupério, a todos, indivíduos, grupos ou tendências políticas, que rejeitam o seu programa ou discordam frontalmente das suas interpretações e propostas. Fá-lo de forma indiscriminada: não apenas em relação aos setores da direita ou da extrema-direita que, por natureza ou convicção, vêm no partido um alvo a combater ou a abater, mas também em relação à restante esquerda. Por vezes, e de uma forma muito agressiva, em relação aos setores que, sobretudo entre os intelectuais, conhecem bem a história do comunismo e por isso se distanciam criticamente das escolhas propostas pelo PCP. Ainda que os seus protagonistas se situem dentro de um pensamento próximo do campo plural do socialismo.

Esta opção advém da dupla herança do bolchevismo e do estalinismo. O primeiro definiu, no quadro da cisão de 1903 do Partido Operário Social-Democrata Russo que o opôs ao menchevismo, um quadro de transformação revolucionária que configurava já o modelo do partido-vanguarda único e da ditadura do proletariado. Após a vitória da Revolução de Outubro de 1917, Lenine foi determinante para o processo ao definir como inimigos a demolir os demais partidos que haviam combatido o czarismo, classificados como contrarrevolucionários e proibidos. Já o estalinismo levou a tendência ao paroxismo, combatendo todos os que se opunham às conceções e à autoridade do “pai dos povos”, ao ponto de tomar como inimigos, e exterminar em escala de largas dezenas de milhares, comunistas que tinham lutado pelo novo regime e participado na tomada do poder pelos bolcheviques. Todos acusados de “anticomunistas”. A sombra do estalinismo, a sua deriva de ódio contra toda a dissidência, sobreviveriam mesmo à “destalinização” de 1956 e à derrocada pós-1989 do “socialismo real”, encontrando-se ainda, formal ou informalmente, em partidos como o PCP.

No momento presente, o enorme isolamento no que respeita à posição tomada face à guerra de invasão da Ucrânia pela Rússia e à caraterização do regime imperial de Vladimir Putin tem levado o partido, e sobretudo muitos dos seus militantes, a usar largamente o qualificativo de “anticomunismo”, que após o 25 de Abril, aliás, jamais deixou de usar perante posições adversas. Neste momento aplicado a todas as pessoas e opiniões que não compreendam e não aceitem a sua posição de conciliação com o imperialismo russo, o seu esforço de diabolização do governo legítimo de Kiev e o seu efetivo alheamento pelo atentado à soberania da Ucrânia e pelo massacre do seu povo.

“Opor-se ao PCP” em todos ou em alguns temas não é fatalmente, como o partido propaga, ser-se anticomunista. Muitos dos que dele discordam se afirmam, aliás, simpatizantes ou até herdeiros do ideal igualitário e solidário do comunismo como utopia que corresponde a uma das mais dignas e necessárias experiências de demanda por sociedades mais justas. Muitos reconhecem e defendem também, sem sombra de dúvida, a legitimidade política e a importância social do partido. “Opor-se ao PCP” pode ser, muito simplesmente, discordar com frontalidade de escolhas que em certos momentos a sua direção assumiu e a maioria dos seus passou a defender sem hesitação. Ao usar o qualificativo “anticomunista” para, de forma hostil e em posição de persistente vitimização, apontar o dedo a quem se lhe oponha numa simples lógica de divergência, o PCP comete um enorme erro. É negativo para si próprio ao afastar possíveis aliados, e alimenta, agora sim, formas de anticomunismo. Num processo de isolamento que será uma perda para a democracia.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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