Não sei ler em casa, mas sou culto ao sol

Não somos artistas, nem autores, somos apenas uma espécie de estenotipista nativo em WhatsApp, e de tantas outras plataformas para enviar mensagem que começam nos infindáveis emails de trabalho.

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Christin Hume/Unsplash

Comprar livros com livros ainda por ler na mesa de cabeceira é um hobby. O meu hobby, mas certamente partilhado por mais “leitores”. Ler seria o hobby principal, mas sinto-me analfabeto sentado no sofá, pouco culto para o acto de consumir literatura. Podia dizer que me falta o cachimbo, a poltrona e a biblioteca de um tal cliché, mas não, é só falta de atenção.

A casa está decorada de estímulos irresistíveis. Desde a Netflix a um qualquer programa de televisão, de toda a Internet a uma simples sesta no sofá, tudo parece melhor opção. Também são coisas que se vêem muito melhor em casa, onde até o telemóvel consegue ser irresistível. Telemóvel que, provavelmente, é onde está a ler esta crónica.

Até a ler esta crónica há múltiplas distracções a nascer no topo do telemóvel em forma de notificações. Ninguém me garante que uma qualquer mensagem seja mais interessante que chegar ao fim deste texto. Provavelmente seria o meu destino. Quem nunca “abriu” o telemóvel para ver as horas e o “desligou” 10 minutos depois sem as ter visto atire a primeira notificação.

Nunca lemos tanto quanto hoje. Também nunca escrevemos tanto. Contudo, o consumo de literatura em Portugal continua baixo. Não somos artistas, nem autores, somos apenas uma espécie de estenotipista nativo em WhatsApp, e de tantas outras plataformas para enviar mensagem que começam nos infindáveis emails de trabalho.

Estenotipista é aquela pessoa que escreve tudo o que é dito em tribunal. Eu não sabia. O meu Word também não. É a única explicação para o sublinhado vermelho que insiste em manter-se a fazer sombra na palavra que tão bem nos descreve. Com a pequena diferença de escrevermos o que nos acontece e o que queremos dizer. Nunca o que os outros dizem. Para isso há print screens que apoiam a nossa preguiça. E foi com esta pesquisa que eu me distraí do texto que estou a escrever. Em casa de ferreiro, espeto de pau!

É por isso que eu fujo de casa para ler. Na esplanada de um qualquer café, o barulho das conversas ao meu redor são a banda sonora que me embala na leitura, tal como as gaivotas quando leio na praia. São distracções que vão e vêm como as ondas e que me deixam estar em paz com o livro. Precisar de sair de casa para ler parece um contra-senso, mas é a dura realidade que os meus olhos vivem.

O telemóvel vai comigo, mas perde muito do seu poder de atracção com o sol. É uma espécie de vampiro que se encolhe no brilho da sua própria luz, insuficiente para a grande estrela do sistema solar. Fica mesmo muito difícil ler uma mensagem, ou é só o meu smartphone que está obsoleto na luz de 2022?

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