A soberania alimentar, ou a falta dela

Vivemos um período peculiar e delicado, em que o país que é o principal produtor de cereais para a Europa enfrenta uma guerra e vê as suas produções suspensas. Urge um plano de recuperação e desenvolvimento agrícola que se anseia desde a década de 90.

O elefante ainda está na sala, aliás, nunca dela saiu. Todos o viam e veem, mas ninguém quer falar dele. Observo atentamente a actividade parlamentar, analiso os projectos de lei - uns falam da morte medicamente assistida, outros abordam a autodeterminação da identidade de género -, todavia, ninguém, excepto um partido, se debruça sobre um assunto essencial. Falo-vos do Partido Comunista Português e do ênfase por ele dado à questão da soberania alimentar.

Não me recordo, pela natureza das coisas, desse período, mas bem sei que adesão de Portugal à União Europeia significou ao longo dos tempos uma cedência de independência em troca de uns quantos tostões. À época, aquando se questionava um português sobre a União Europeia, este pouco ou nada sabia sobre aquela instituição, apenas tinha conhecimento de que dali viria dinheiro, e isso era, aos olhos de maior parte da população, substancial.

Porém, por detrás de um sonho federalista partilhado pelos partidos do poder, estava um sonho muito maior – fundos europeus. Os fundos europeus eram a palavra de ordem na altura da adesão e, entre eles, podemos destacar três: o Fundo Social Europeu (FSE), que visava apoiar a política social e de emprego; o Fundo Europeu de Orientação e Garantia Agrícola (FEOGA), destinada, fundamentalmente, a apoiar a agricultura; e, por último, o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), que tinha como finalidade apoiar o desenvolvimento de regiões mais pobres do espaço europeu.

Segundo dados estatísticos disponibilizados pela Agência para o Desenvolvimento e Coesão, Portugal recebeu no âmbito do FEOGA, desde 1989, mais de 16 mil milhões de euros, sob o pretexto de garantir a proclamada convergência real com a Europa. À medida que entrava dinheiro, aumentava-se a dependência externa, perdia-se paulatinamente soberania, a ausência de fiscalização dos fundos amplificava-se, e Portugal ia-se tornando num subsidiodependente da União Europeia. Havia, e ainda há, um sentimento de que tudo se podia gastar sem qualquer tipo de controlo prévio, pois, no dia seguinte, a mão estendia como se de mendigos nos tratássemos, e o dinheiro nela era colocado, para se desperdiçar como e onde bem se entendesse.

Podemos, segundo dados fornecidos pela Agência para o Desenvolvimento e Coesão, organizar os apoios recebidos em cinco momentos: Quadro Comunitário de Apoio I, entre 1989-1993; Quadro Comunitário de Apoio II, de 1994 a 1999; Quadro Comunitário de Apoio III, entre 2000-2006; Quadro de referência de estratégia nacional, de 2007 a 2013; e, o Acordo de Pareceria, entre 2014-2020.

No primeiro QCA (Quadro Comunitário de Apoio), um dos objectivos era a promoção da competitividade da agricultura e desenvolvimento rural, todavia, no âmbito desse quadro, vários foram os investimentos realizados, desde a criação de auto-estradas à construção hospitais, da construção de estabelecimentos de ensino à abertura de bolsas de formação avançada, só não foram, infelizmente, feitos investimentos significativos no sector da agricultura.

Nos restantes quadros de apoio, porém, a agricultura foi esquecida como se de um problema não se tratasse. Dos fundos europeus disponibilizados a Portugal desde a sua adesão à União Europeia, nunca mais de 3% foi concedido ao sector agrícola. E tudo o que para esse sector foi canalizado, careceu de um investimento adequado devido à falta de preparação prévia de distribuição e fiscalização dos fundos europeus, tendo sido gasto o dinheiro em tudo menos na produção e desenvolvimento da agricultura.

Os resultados dessa falta de visão política revelaram-se fulcrais para a perda de soberania alimentar. Segundo dados do Pordata, as propriedades agrícolas exploradas decresceram de 594, 418 mil em 1989, para 286, 191 mil em 2019; os hectares de terra para fins agrícolas diminuíram de 4.005.573 em 1989, para 3.963.945 em 2019; a produção de principais leguminosas secas regrediu de 37.580 toneladas em 1986, para 5.421 toneladas em 2020; a produção de batata decresceu de modo estonteante, passando de 1.576.516 toneladas em 1986, para 409.641 toneladas em 2020; Reduziu-se em 912.732 mil o número de trabalhadores no sector agrícola, desde 1989 até 2019. E hoje, além de uma enorme dívida externa e dependência preocupante da União Europeia, onde se observa o desenvolvimento agrícola?

Contudo, temos de ter presente um factor relevante – a soberania como um todo. Em epígrafe referi que fomos cedendo a nossa independência em troca de uns quantos tostões. Existe uma tentativa clara de centralizar o poder entre três ou quatro países, centralizar as produções agrícolas, e compensar pecuniariamente os outros para não se desenvolverem. Portugal, desde 1989 que recebe para não produzir. Querem que importemos aos países que a União Europeia decidir em troca de dinheiro para compensar a ausência de produção. Isso não é ter como objectivo a convergência real com a União Europeia, isso é tornar os países menos soberanos a cada dia que passa, aumentando a divida externa dos mesmos, até que nada mais haja a fazer do que a instituição União Europeia passar de uma organização de cooperação para uma organização de integração e, consequentemente, atingirem o objectivo dos Estados Unidos da Europa. Com o CDS-PP fora do Parlamento, a visão soberanista carece de um defensor que não se opõe à União Europeia, mas que não prescinde da soberania, seja em que sector for.

O PCP apresentou medidas concretas de apoio ao sector agrícola e planos estratégicos de recuperação económica do mesmo, como por exemplo, o Regime Específico de Apoio e Incentivo à Produção Nacional de Cereais, um reforço das estruturas do Ministério da Agricultura, e a constituição de um grupo de trabalho representando por entidades relacionadas com o sector, sob responsabilidade dos ministérios que tutelam as áreas da agricultura, pescas e economia.

Vivemos um período peculiar e delicado, em que o país que é o principal produtor de cereais para a Europa, nomeadamente para Portugal, enfrenta uma guerra e vê as suas produções suspensas. Urge, deste modo, um plano de recuperação e desenvolvimento agrícola que se anseia desde a década de 90. A facilidade de cooperação entre Estados-membros da União europeia e outros países europeus, não pode servir de pretexto para a ausência de investimento no sector da agricultura, muito menos se pode desprezar a sua importância.

Até lá, o elefante continua sentado na sala, à espera que alguém ganhe coragem para o tirar de lá.

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