A antiga e sempre aprimorada arte de matar, ou a propósito das metodologias usadas hoje na Ucrânia

E tudo quanto havia na cidade destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento. Relato bíblico da destruição de Jericó (Josué 6, 21).


Como justificação da Fraternidade que muitas vezes vemos acontecer entre humanos, encontramos, muitas vezes, a natural entreajuda entre elementos da mesma espécie. Da mesma forma, muitas outras recorremos ao misto de racionalidade e de espiritualidade para afirmar que, “dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”, na lapidar frase do art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Seja a causa biológica, racional, cultural ou, até, espiritual, a verdade é que somos capazes dos mais nobres atos de abnegação, de compaixão, de sacrifício e de afirmação da dignidade de um qualquer outro, tantas vezes um desconhecido.

Mas esta constatação não nega outra verdade insofismável: os mesmos seres, da mesma espécie, são também exímios no uso da violência e na capacidade de espalhar a morte. Quem estuda História, facilmente vê diante de si banalizarem-se situações que ao abrigo dos nossos valores são absurdas. Seja a grande coligação que dizimou os Assírios em Nínive, a insana conquista de Cartago pelos romanos, ou a destruição de Jericó a mando de Deus. Muitos seriam os exemplos de grandes mortandades, de chacinas e genocídios.

A frase atribuída popularmente a Estaline é um perfeito continente de sentido, de significado e da forma como tantas lideranças, tantas tropas e tantos civis efetuaram a morte sistemática de milhares, por vezes, de milhões de iguais: “A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística”.

Entre o drama que todos compreendemos quando um ente querido adoece ou falece e a “banalização do mal” equacionada por Hannah Arendt, vai toda uma distância entre o que nos toca e aquilo a que nos conseguimos mostrar alheados, ausentes ou indiferentes. Não é apenas a proximidade familiar, a distância geográfica, mas também a empatia, a identificação que de alguma forma se cria, ou não.

Foto
MICHAEL BUHOLZER/LUSA

O século XX poderá ter sido dos mais violentos e, em escala populacional, o mais rico em mortes, em genocídios, em capacidade de matar em larga escala de forma eficaz – no que a esta façanha diz respeito, a ciência muito nos ajudou com várias revoluções científicas que aprimoraram metodologias com novos paradigmas de destruição, sejam os gases tóxicos e venenosos, seja a bomba atómica ou, mais simples, a metralhadora e toda a panóplia de armas de tiro repetitivo.

Mas a morte é, por vezes, servida de formas brutalmente desumanas. O gueto de Varsóvia é um exemplo que nos mostra que a degradação pode atingir limites inimagináveis, tal como é o tão desconhecido Holodomor.

Nos anos trinta do século passado, integrada na dinâmica soviética de coletivização da produção, a Ucrânia é sugada ao limite na sua produção alimentar. Restando bolsas de ucranianos que não queriam aderir a essa coletivização forçada ou se recusam a entregar os já escassos alimentos, para além de ataques, prisões, deportações em massa e mortes indiscriminadas, por fim, os ucranianos são obrigados a ficar nas suas localidades sem, sequer, poderem sair para buscar alimento. Terão morrido, fundamentalmente à fome, neste misto entre espoliação e vingança, entre 3 e 12 milhões de ucranianos.

Hoje, menos de noventa anos passados, somos confrontados com o que nos mostra claramente uma forma muito acirrada de olhar para o outro. Ao longo dos séculos, foram muitas as invasões que os ucranianos sofreram, com grandes matanças, também. A violência que há menos de um século se foi capaz de fazer contra um povo é de natureza da negação de uma identidade que, hoje, vem ao de cima como que ativada por uma chave simbólica, uma fobia, uma narrativa demonizadora.

Temos vários outros processos em que na cultura popular se foram mantendo códigos que podem ser ativados em qualquer momento. É na escola, nos manuais escolares, especialmente nos de História, que se semeiam esses fósseis simbólicos que podem vir a ser ativados com discursos nacionalistas ou de medo.

Contra estas narrativas não há informação nem contraditório que seja eficaz na destruição dos seus conteúdos falsos. É no campo do simbólico que se criam essas verdades inquestionáveis que destilam ódios que saltam gerações e matam de forma violenta e bárbara quando são novamente ativados por oportunistas, manipuladores, gerando assassinos.

É a isso que assistimos hoje na Ucrânia quando sabemos de mortes de civis, de execuções sumárias, de ataques a hospitais e maternidades, de violações, de destruição de alimentos, de morte lançada indiscriminadamente, passando ao lado de todas as normas que deveriam reger a guerra.

Foto
NATIONAL POLICE OF UKRAINE/Reuters

O que vemos acontecer aos ucranianos às mãos das tropas russas é o resultado de verdades inculcadas através do medo e da fobia na cultura popular russa. Não é com metodologias normais que se combate um inculcamento de natureza quase psicótica. A negação das narrativas contra a Ucrânia apenas levará a uma ainda maior mitificação do líder russo, transformando-o em quase messias.

Sugerir correcção
Comentar