Cientistas lançam movimento de desobediência civil contra as alterações climáticas

“Já não é suficiente fazer apenas a nossa investigação e esperar que os outros leiam os nossos artigos e compreendam a gravidade e urgência da crise climática”, diz um dos cientistas envolvidos nesta iniciativa internacional inspirada na Extinction Rebellion e que já tem participação portuguesa.

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Polícia retira cientistas que ocuparam uma ponte no centro de Berlim, na Alemanha REUTERS/Christian Mang

Uma rede de cientistas em cerca de 25 países, entre os quais Portugal, lançou esta semana a maior campanha de desobediência civil de sempre protagonizada por cientistas, num alerta para que as emissões de gases com efeito de estufa sejam reduzidas já e de forma radical – para que exista ainda alguma hipótese de limitar o aumento da temperatura média do planeta a 1,5 graus Celsius.

Esta iniciativa acontece na semana em que foi divulgado o mais recente relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa), com a mensagem “é agora ou nunca”: sem redução imediata nas emissões, será impossível limitar subida da temperatura a 1,5º. O movimento mobiliza mais de mil cientistas em todo o mundo para participar em acções como ocupação das universidades, greves, protestos junto de instituições científicas e governamentais, explica um comunicado de imprensa da Rebelião Científica, um movimento que se inspira na Extinction Rebelion.

A palavra de ordem é “O objectivo 1,5 graus está morto, revolução climática já”. “Enquanto cientistas, tendemos a esquivar-nos do risco. Não queremos pôr em risco o nosso trabalho, a nossa reputação, o nosso tempo. Mas já não é suficiente fazer apenas a nossa investigação e esperar que os outros leiam os nossos artigos e compreendam a gravidade e urgência da crise climática”, explicou Rose Abramoff, uma cientista do clima norte-americana, citada num comunicado de imprensa do grupo.

“Estamos a viver uma situação absolutamente excepcional em termos históricos, não só na história das nossas universidades, das nossas cidades ou dos nossos países, mas na história da espécie humana e do planeta Terra. As perspectivas que se colocam são ecocídio mais genocídio. É necessária uma reacção social forte”, declarou Jorge Riechmann, um cientista social de Espanha, igualmente envolvido na iniciativa.

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Protesto da Rebelião Científica em Lisboa, junto ao Ministério do Ambiente Raquel Sousa Gomes

“Somos centenas de cientistas que apelamos aos nossos colegas para que se nos juntem nas ruas, para fazer justiça às palavras que escrevemos: se não actuarmos já, não só é certa a catástrofe total como vai acontecer da forma mais injusta. Aqueles que contribuíram menos para causar o problema serão aqueles que vão sofrer mais. Sinto uma obrigação moral de tentar evitar que isto aconteça”, acrescentou Riechmann, citado no comunicado.

Participação portuguesa

Portugal tem um grupo recém-criado, há duas semanas, que se associou a este movimento, explicou ao PÚBLICO Patrícia Silva. “Somos sobretudo estudantes de doutoramento, frustrados com a inacção do Governo e da sociedade em geral. O relatório do IPCC que saiu esta semana mostra que tudo é ainda mais urgente: temos de atingir o máximo das emissões de gases com efeito de estufa nos próximos três anos para depois começarmos a reduzir, se queremos cumprir o objectivo de manter o aquecimento até 1,5 graus [o pico das emissões terá de ser atingido até 2025 e reduzido em quase metade até ao final desta década, diz o relatório].

“Fizémos já uma acção na terça-feira junto aos ministérios do Ambiente e das Finanças, nas quais estiveram envolvidas dez pessoas, embora apenas três directamente no protesto”, explica Patrícia Silva, que está a fazer doutoramento em Geofísica na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. “Sinceramente nem sei bem quantos somos”, diz. “Temos pessoas de Leiria, Caldas da Rainha, Lisboa, de outras zonas do país, cientistas de várias áreas, mas com a preocupação comum das alterações climáticas”, explica.

“O objectivo destas acções foi darmo-nos a conhecer à comunidade académica, para que se saiba que o grupo existe também em Portugal. Esperamos um dia poder organizar acções grandes como houve em Espanha, por exemplo”, diz Patrícia Silva.

Houve já acções em várias cidades em Itália, Espanha, Dinamarca, Reino Unido e Alemanha. Em Roma quatro cientistas foram detidos, em Londres um e dois em Copenhaga. Em Espanha 53 manifestantes foram detidos depois de derramarem sangue falso na fachada do Congresso Nacional. Nesta quarta-feira devem realizar-se acções nos Países Baixos, Panamá e Estados Unidos, que decorrem até dia 9. Em países como a Serra Leoa, Malawi, Nigéria e República Democrática do Congo estão a realizar-se conversações e iniciativas de divulgação.

O movimento Rebelião Científica foi criado em 2020 por dois estudantes de doutoramento em física na Universidade de St. Andrews, na Escócia, inspirado em parte na Extinction Rebellion. A primeira acção significativa, com mais de 100 cientistas, ocorreu em Março de 2021 e teve como alvo a British Royal Society e o grande grupo editorial Springer Nature. “Basicamente colámos cópias aumentadas dos artigos publicados nas revistas científicas deles apelando a mudanças transformativas rápidas na sede deles”, disse à AFP Kyle Topher, um cientista ambiental e membro do grupo.

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Em Espanha, os cientistas foram arrastados da escadaria do Congresso Nacional Susana Vera/REUTERS

Em Agosto, divulgaram uma versão (que ainda não era a final) do penúltimo relatório do IPCC – o que permitiu ver como a linguagem destes relatórios é negociada ao milímetro, de forma a tornar-se o mais neutra possível. “O IPCC tem evitado nomear os principais responsáveis [pelas emissões de gases com efeito de estufa] durante os últimos 30 anos, o que é uma das razões pela falta de cortes reais nas emissões”, diz o comunicado do grupo que anuncia a campanha de desobediência civil.

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