O jornalismo e a propaganda de guerra

As pessoas preferem as evidências que deem razão ao seu acantonamento e chamam bom jornalismo àquele que as ajuda nesse processo.

É difícil distinguir a informação que as máquinas de propaganda russas e ucraniana põem a circular da que nos chega através do verdadeiro trabalho jornalístico. Há outras máquinas de propaganda a trabalhar e estão todas ao rubro. É um facto.

Poderia pensar-se que ninguém aceita ser informado pela propaganda de guerra mas é um erro. Algumas pessoas querem precisamente receber informação que corrobore na íntegra a sua interpretação da guerra. Aplaudem quem noticia factos que deem razão ao que têm vindo a dizer. Têm pouca, ou nenhuma, margem para dar atenção ao que contradiz, ou que julgam contradizer, essa interpretação.

Em tempos de guerra o jornalismo é especialmente preciso, mas nem todos o querem. A mediação entre o acontecimento e as pessoas, como meio adequado ao exercício do espírito crítico por parte destas, deixa de ser uma necessidade coletiva. As pessoas preferem as evidências que deem razão ao seu acantonamento.

Chamam bom jornalismo àquele que as ajuda nesse processo.

O perigo é enorme. Passa a chamar-se propaganda ao que não lhes dá razão e jornalismo apenas ao que vem de encontro a esta. Grandes profissionais aos que defendem as suas visões do mundo e embustes a todos os outros. Mata-se o jornalismo, mata-se o pensamento. Acaba o escrutínio. A dialética da discussão pública fica inquinada e ainda mais estéril do que já é habitual.

Só que mesmo quem prefere a propaganda ao jornalismo precisa dele. Não se conseguiu ainda pensar numa forma de preservar as democracias ocidentais sem defender o jornalismo. O jornalismo fora destas democracias tem a vida dificultada mas estas democracias sem jornalismo não existem. Deverá então cuidar-se de o valorizar.

Valorizar o jornalismo implica atacá-lo, na parte em que aceita difundir propósitos de propaganda, na parte em que se abstiver de procurar saber a verdade, de relatar os factos com rigor e sem cuidar avaliar a quem agrada ou desagrada.

O grande crítico do jornalismo foi Karl Kraus, o homem que lhe dedicou a sua vida como um sacerdócio. Escreveu durante 37 anos – desde 1899 e até à sua morte – na revista Die Fackel e acabou a fazer a publicação sozinho. Parte do seu trabalho jornalístico era a própria crítica jornalística. Deveriam recuperar-se os seus ensinamentos puros e radicais. Kraus criticava a manipulação da opinião pública por parte do jornalismo; dizia que, mais do que manipular a opinião dos leitores, inquinava a possibilidade de fazerem uma análise própria.

Foi Kraus que disse que o jornalismo se deveria sentar no banco dos réus por ter responsabilidade na disseminação da violência que levou à 1ª Guerra Mundial. Não aconteceu nem metaforicamente. O jornalismo nunca se destacou pela autocrítica.

Na verdade, a lógica do banco dos réus leva quase sempre a que todos se sentem lá. Nos processos colectivos poucos estão isentos: as pessoas que não querem jornalismo mas sim propaganda; o jornalismo que lhes faz a vontade; quem assiste e nada diz. Quando o que queremos defender tem falhas, tem de se começar por expurgá-las. E não se pode fazê-lo sem as apontar.

Esse banco deveria ter um lugar guardado para a União Europeia. Errou quando censurou o canal russo RT e a agência de notícias Sputnik. Foi uma decisão ao nível do que se critica, e bem, em Putin, que fez o mesmo com a BBC e a Deutsche Welle. Quem se sentiu agradado com essas decisões é fraco defensor dos valores democráticos.

Não estamos em guerra mas estamos muito perto de uma. Uma guerra que já fez muitas vítimas. Não se deve permitir que faça mais uma: a verdade. Nesta fase, só o jornalismo a poderá evitar.

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