Whistleblowing, Vasco Pulido Valente e Machado de Assis

Não sou a favor de que a luta contra a corrupção se faça à custa da possível “corrupção moral” da nossa sociedade como um todo.

No dia 20 de dezembro, foi publicada a Lei n.º 93/2021 | DRE, que estabelece o regime geral de proteção de denunciantes de infrações, transpondo a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União (europa.eu).

O regime legal protege todos aqueles que num vastíssimo conjunto de setores - que vão da contratação pública, passando pela defesa do consumidor e pela saúde pública - denunciarem “infrações cometidas, que estejam a ser cometidas ou cujo cometimento se possa razoavelmente prever, bem como tentativas de ocultação de tais infrações” (cfr. artigo 4.º).

Numa coincidência que tem o seu quê de trágico, um regime legal que, de certa forma, “institucionaliza” e “normaliza” a “bufaria” e protege o “bufo”, entrará em vigor (junho de 2022) quando em Portugal já tivermos vivido mais tempo sob liberdade do que sob a ditadura salazarista.

Inserido na Estratégia Nacional Anticorrupção (Lei n.º 94/2021 | DRE), com vista à prevenção da corrupção nas organizações privadas e públicas, os seus autores morais e materiais não se deixaram impressionar com a constatação de que “estudos apuraram que a percentagem de denúncias fundadas é muito baixa (…) e que nesse contexto, ficaram documentados múltiplos casos de pessoas cuja carreira profissional resultou arruinada por obra de acusações internas difamatórias” (Paula Câmara, Jornal de Negócios de 7/3/2012).

Em 4 de março de 2006, Vasco Pulido Valente escreveu (Não fui feito para isto) sobre o politicamente correto, em termos que retratam bem o perigo do regime de denúncia: “Cada cidadão, cada medíocre, cada engraçadinho pode esconder um polícia. Pior ainda: um delator e um explorador do escândalo”. Foi para isto que se derrubou a ditadura salazarista (25 de abril) e se evitaram outras (25 de novembro)?

Caro leitor, antes que pergunte, eu não tenho alternativa, nem quero sugerir um qualquer regime sucedâneo do que entrará em vigor. Mas também sou, como você, contra a corrupção.

O que não sou é a favor de que a luta contra a mesma se faça à custa da possível “corrupção moral” da nossa sociedade como um todo. Notará, como eu, a perversidade da coisa?

Num conto sobre a loucura e a sanidade (O Alienista), Machado de Assis relata a missão de um médico, que se (auto)destina a curar a “loucura” dos seus concidadãos na pacata Vila de Itaguaí. De acordo com um método rigorosamente científico.

No início, quase todos os habitantes da vila acabam encarcerados, depois (libertados os primeiros e apurado o método científico) só os nobres de carácter. No final, o alienista todos liberta, decidindo o seu próprio encarceramento.

Receio bem que o regime da denúncia produza um resultado equivalente.

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