Grades, pontes e horizontes: uma manifestação histórica

Inédito foi que famílias negras, ciganas e brancas pobres tenham encontrado força – interior e coletiva – para se juntarem reivindicando os seus, os nossos, direitos e que o tenham feito sem cair na tentação de diluir a dimensão racial na de classe, nem o problema estrutural que é a prisão na particularidade de cada caso.

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Manifestação de 12 de Março de 2022 em frente ao Estabelecimento Prisional de Lisboa LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO
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Manifestação de 12 de Março de 2022 em frente ao Estabelecimento Prisional de Lisboa LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO

Passou despercebida a manifestação Juntas/os do Luto à Luta – Justiça por Daniel, Danijoy e Miguel, em Lisboa, neste sábado chuvoso. Os três morreram, em condições suspeitas, em prisões portuguesas. Familiares – Alice Santos (mãe de Danijoy), Joel Cesteiro (filho de Miguel Cesteiro) e Luísa dos Santos (mãe de Daniel Rodrigues) –, diferentes coletivos e ativistas manifestaram-se reivindicando justiça e criticando o sistema prisional. Foi, pelo menos por duas razões, uma manifestação histórica.

Não teve destaque na televisão e os jornais que lhe deram alguma atenção, repetindo a notícia da Lusa, foram pouco além da contagem de “várias dezenas” de pessoas e da reescrita de informação, de alguma forma, já conhecida. Estes três casos deixam adivinhar a violência brutal e violação dos direitos humanos dentro das prisões, a impunidade desses crimes, o descaso das autoridades por aqueles que tem à sua guarda, quando não mesmo a obstrução do apuramento da verdade. Infelizmente, isso não é inédito, nem pontual.

Em cinco anos, ocorreram 303 mortes nas prisões portuguesas, das quais 66 foram dadas como suicídio e apenas seis investigadas pela Polícia Judiciária, como deveria ocorrer com qualquer morte dentro da prisão. No contexto europeu, Portugal é, de longe, o país com mais elevada taxa de mortalidade nas prisões – 50 por 100 mil reclusos, contra uma média da UE15 de 23,3 (SPACE, 2020), há décadas que apresenta o dobro das mortes da média europeia. É aquele que apresenta taxas de encarceramento mais elevadas – 126 reclusos por cada 100 mil habitantes, enquanto na UE15 a média é de 91 (Eurostat, 2019) – e o terceiro no encarceramento feminino (SPACE, 2020). A média do tempo de prisão é das mais longas (aproximadamente 32 meses, quando entre os 47 países do Conselho da Europa a média era cerca de 11 meses, em 2018). Mesmo sendo o terceiro país mais seguro do mundo (RASI, 2019), em Portugal, a inclinação para punir é forte, mas seletiva.

As prisões são para gente pobre, negra, cigana e imigrante, gente a quem historicamente já a sociedade e o Estado falharam no trabalho, habitação, educação, saúde, justiça, proteção social, etc. Para os ricos, não há “Zonas Urbanas Sensíveis”, não há tomas forçadas de Lagarctil e fármacos semelhantes para gerir o “clima” da cadeia a custo da saúde mental dos reclusos, não há centros de instalação temporária do SEF, como aquele em que Ihor Homeniuk foi assassinado. As pessoas com nacionalidade dos PALOP estão dez vezes mais sujeitas a ser encarceradas. Danijoy, com pouco mais de 20 anos e sem antecedentes criminais, foi condenado a seis anos de prisão efetiva por roubar telemóveis. Ricardo Salgado roubou um país e é condenado (até recurso em contrário) ao mesmo tempo de pena. Nada disto é novo ou pontual.

Realmente inédito na manifestação deste sábado é que famílias negras, ciganas e brancas pobres tenham encontrado força – interior e coletiva – para se juntarem reivindicando os seus, os nossos, direitos e que o tenham feito sem cair na tentação de diluir a dimensão racial na de classe, nem o problema estrutural que é a prisão na particularidade de cada caso. É a primeira vez que isto acontece na história da nossa democracia. Se não temos mais famílias a protestar publicamente contra as prisões não é porque faltem casos para denunciar, é porque infelizmente sabem que serão ainda mais enredadas num processo burocrático-judicial em que, para além dos custos, ainda podem acabar no banco dos réus. Sabem que dificilmente encontrarão a solidariedade e “empatia” generalizada, que não há comoção coletiva porque são filhas e filhos de um Deus menor, para quem a tortura e a morte prematura e injustificada são destinos prováveis.

O segundo aspeto que interessa sublinhar prende-se com alianças e horizontes políticos. Quem lesse o manifesto, atendesse às palavras de ordem escritas e gritadas em frente ao EPL, olhasse com olhos de ver as pessoas que deram corpo à manifestação, dar-se-ia conta de um universo político-ideológico diversificado, cujas propostas deveriam ser noticiadas e publicamente discutidas. Apesar de inúmeras sobreposições e especificidades, na manifestação de sábado havia propostas abolicionistas (em que se pretende o fim do aparato estatal de encarceramento, violência e controlo de pessoas), orientações de esquerda e antifascistas (em que o caráter burguês do Estado numa sociedade capitalista é entendido como causa das desigualdades sociais e violências nas prisões), perspetivas mais reformistas (em que se propõem formas de melhoria do funcionamento do sistema prisional e se denunciam as suas disfuncionalidades), perspetivas negras, ciganas e antirracistas (que fazem uma leitura e um luta interseccional, sublinhando o racismo, colonialidade e anticiganismo estruturais) e a perspetiva de (ex-)reclusos/as e suas famílias (fundada no conhecimento pormenorizado do funcionamento das prisões e de toda a cadeia opressiva que lhes está a montante, dos tribunais, aos advogados do Estado, à violência policial e à falta de oportunidades).

No dia 8 de Março, já Alice Santos e Luísa dos Santos haviam participado juntas na manifestação feminista. Como bem salientaram, são as mulheres que enchem as horas de visita nas prisões e asseguram os cuidados de reclusos e reclusas. Elas são o elo com “a vida cá fora”. Em novembro último, movimentos ambientalistas alteraram para o dia seguinte a Marcha Mundial pela Justiça Climática, de modo a poderem juntar-se à manifestação “Justiça por Danijoy”. Alice Santos e ativistas antirracistas estiveram depois, também, nessa marcha. Não foi a primeira vez (já se havia ensaiado essa aproximação aquando da manifestação a propósito do assassinato de George Floyd) que se deram passos na consolidação da ideia de que “não há justiça climática, sem justiça racial”.

O facto de esta confluência de movimentos políticos e forças sociais não merecer discussão nem interesse nos meios de comunicação social limita-nos. Sabemos que as prisões são tema que não dá votos, nem interessa ao poder, que interiorizámos a ideia que as sociedades “necessitam” de prisões, como se fossem “naturais” e sempre tivessem existido, que há medos que persistem numa sociedade com um passado recente de censura e polícia política. Sabemos que o tema está marcado pelo anátema do estigma e que há um processo de alterização que recompensa quem está cá fora com um sentido de distinção. Os bloqueios são muitos, mas o debate sobre as prisões, exatamente porque elas são centrais e não “marginais” ao funcionamento das nossas sociedades, é imprescindível porque exige-nos capacidade de desconstruir as relações e regimes de poder em que vivemos, porque é uma porta de entrada fundamental para pensar outros horizontes de sociedade.

Nota: Nas comparações com o contexto europeu optou-se, quando possível, pela delimitação “UE15” e não “UE27” porque esta última integra países com sistemas prisionais ainda marcados por um passado recente não democrático. Nos cálculos estatísticos referentes à UE15 não foram tidos em consideração, como seria de esperar, os dados referentes ao Reino Unido.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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