Entre solidões de um mundo novo

Neste confronto de forças entre as meritocracias da produtividade e da influência andamos sempre na busca do preenchimento da solidão, da tal loneliness. Até porque temos medo de não pertencer a nenhum dos mundos, de sentirmos na pele a renegação da falta da dedicação total.

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Vitaly Taranov/Unsplash

Hoje venho falar – escrever – de solidão. Aquele sentimento que a todas as pessoas toca, se instala e se desenvolve, em moldes variadíssimos, mas fomentado pelas configurações sociais da actualidade como sendo a fluidez emocional e a corrida contra o tempo. Uma espécie de ténue dor, crónica, que com o passar dos dias prolifera, alastrando-se às demais sensações e aos próprios valores – como lamentava Fernando Pessoa, “Sinto-me livre, mas triste” – atingindo o ego individual e, em simultâneo, o ethos comunitário também.

Num livro que percorri recentemente – Sozinho na multidão: Contos sobre a solidão – são abordados vários dos contextos em que ela pode emergir. A solidão na relação entre pais, mães e filhas/os, avós e netas/os; entre namoradas/os e colegas de trabalho; em organizações hierárquicas; mesmo entre territórios, a partir das fortes identidades rurais que, não obstante, amiúde se localizam num canto das memórias das populações maioritariamente citadinas. Um dos textos é assente num diálogo entre avó e neto em que é distinguida a loneliness da solitude.

A primeira nasce do aborrecimento, do tédio, da falta de acção e de motivação. Como diz o neto, “podemos inventar estratagemas para lhes fugir, mas não podemos fugir-lhes o tempo todo”. Daí que possa ser uma dor mais ou menos intermitente, indo e voltando conforme os humores e a agitação das memórias. Já a solitude é como que uma ausência artística ou intelectual, talvez um retiro espiritual. “É a solidão dos pensadores, dos escritores, dos poetas, dos artistas, dos sonhadores”, afirma a avó do conto. É, de certo modo, uma escolha pessoal, baseada na pretensão de um equilíbrio entre a companhia e a individualidade.

Acontece que é raro desfrutarmos de solitude. Mais provável é consultarmos as notícias nos media ou estarmos em quartos fechados num estado carregado de loneliness. Não é por acaso que muitas são as pessoas, profissionais da área da saúde ou mesmo do entretenimento, a defender a necessidade de termos momentos de relaxamento, de lazer, em espaços abertos e, se possível, longe dos conflitos urbanos.

Nós sabemos do cansaço que a vida nas cidades nos proporciona, da agitação que é estarmos atentas/os, minuto a minuto, aos e-mails e às publicações nas redes sociais para não nos desleixarmos na faina ou não sermos desintegrados socialmente. Numa das duas esferas queremos estar plenamente incluídas/os. É por isso que trabalhamos demais e até tarde ou ficamos horas a tirar fotos, a adicionar filtros e a tentar encontrar a melhor frase para a sua descrição, procurando o exercício de uma espécie de soft power dentro do nosso próprio núcleo de conhecidas/os.

Neste confronto de forças entre as meritocracias da produtividade e da influência andamos sempre na busca do preenchimento da solidão, da tal loneliness. Até porque temos medo de não pertencer a nenhum dos mundos, de sentirmos na pele a renegação da falta da dedicação total. Tendemos a pensar que é mais fácil alterar um comportamento para nos assimilarmos ao grupo do que admitir a necessidade de aprendermos a crescer enquanto indivíduos desacompanhados. Justificamos esta fuga com o carácter social do ser humano, ignorando que os momentos de ausência também fazem parte das nossas sociabilidades e também são precisos para que as relações ganhem novos contornos, tragam novidades, se tornem maduras. A solitude é também esta opção por uma solidão meticulosa, diria mesmo racional, como forma de desenvolvimento.

O problema é que a solitude também é cara. Trata-se mesmo de uma questão de classe social. Não são todas as pessoas que têm a hipótese de se distanciarem sabendo que estão preenchidas quaisquer condições de alimentação, de habitação, de energia e equipamentos, de rendimentos. Viu-se com os confinamentos da covid-19, em que definitivamente estávamos todas/os no mesmo mar, mas de longe em barcos diferentes. Ou no mesmo barco, mas em quartos com distintas condições. Alguns/mas conseguiram reflectir mais, cantar mais, tocar mais, ler mais, cozinhar mais, assistir a mais filmes e séries com alguma tranquilidade. Ainda que tenham estado em suas casas por dever ou obrigação, num esforço de combate contra a disseminação de uma doença, o certo é que houve quem tenha feito de um possível estado de medo, de incompreensão, de loneliness iniciais uma solitude mais ou menos pacífica e revitalizadora.

Contudo, para outras/os tantas/os, que se depararam com dificuldades financeiras, problemas familiares e transtornos mentais, tal como agora acontece com a guerra na Ucrânia, estes momentos representam nada menos do que trauma, desespero, dor. A loneliness vem e atraca de supetão, retirando dos imaginários destes sujeitos todo o possível lugar em que a solitude poderia alguma vez brotar.

A actualidade exige uma abundante compreensão humana. O mundo mudou e as gerações mais recentes estão a lidar com novos velhos fenómenos que pareciam, até há pouco, deveras implausíveis. Com tanta velocidade, igualmente céleres serão as transformações, designadamente nos valores e nos modos a partir dos quais pretendemos usar e abusar deles. Entre indecisões e violências, loneliness e solitude são e serão faces de uma mesma moeda com a qual teremos de saber lidar. A bem de uma conjugação viável entre pilares societais e vontades individuais. Pela saúde de todas/os e de cada um/a.

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