Solidão

Crónica do fotojornalista Adriano Miranda, enviado do PÚBLICO à Ucrânia.


O pior de tudo é quando os candeeiros vomitam uma luz fraca. Sinal que a solidão está a chegar. Jantar não há. Hoje foi um kebab com uma quantidade de gordura suficiente para revoltar o estômago. O ar fresco da praça ajudou a conter a revolução. O 404 está à minha espera. Tiro as pesadas botas. As calças. A t-shirt que ironicamente tem estampado a letras pretas “estou de férias”. Mergulhado no computador, num quarto de paredes cinzentas e mobília escura, a adrenalina sobe à medida que cada fotografia se deixa mostrar. Todas têm uma história. E são essas histórias que me fazem permanecer aqui.

O recolher obrigatório deixa as ruas vazias. Um automóvel da polícia. Soldados. Qualquer vulto pode conhecer a dor que uma bala pode provocar. A solidão toma conta de tudo. Até a música se transforma em ruído, meu querido Antony and the Johnsons. Comunicar com a família alivia. Sossegar a mãe é uma obrigação. Mas nunca falamos do mar, do sol, da chuva, das plantas, da escola ou da conta da luz. Falamos sempre da guerra. Para mim está perto. Para eles está ainda mais perto. A guerra. A guerra. O sufoco que nos provoca. As previsões que procuram sempre o nosso desejo – a paz e só a paz.

Na mistura de um beijo maior com um abraço demorado, um papelinho com o Santo António foi depositado na palma da minha mão direita. Sei que não acreditas, mas anda sempre com ele, disse com a voz embargada. Quem tem mãe tem tudo. Ri. Um riso nervoso. Desde esse dia, o dia da partida, o Santo de Lisboa ganhou aconchego no bolso do casaco bem junto ao peito. Aconchegado fico eu também.

Na praça com um cavaleiro triunfante uma velha veio ter comigo. Falou imenso. Não falei nada. Só abanava a cabeça e sorria. As nossas letras não são iguais. Tirou um papelinho da mala e na minha mão direita o depositou. A imagem de Jesus Cristo olhou para mim. A velha riu com os seus dentes de ouro. Gesticulou o adeus e gritou a única palavra que percebi – América! O Santo António ganhou companhia.

No táxi que me entregou à solidão, confessei ser português. O homem levanta o punho e grita – o povo unido jamais será vencido! Che Guevara. O mundo é de muitas cores. Que bom. Aqui só falta o arco-íris.

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