Até amanhã, Padre Mário

No tempo do medo e do obscurantismo, o Padre Mário cumpriu com coragem, com capacidade intelectual e paixão o seu papel de sacerdote militante da causa dos pobres.

Quando eu tinha 9 anos, a minha aldeia era pequena e pouco conhecida. Foi quando o Padre Mário chegou para evangelizar e, aí sim, Macieira da Lixa, freguesia do concelho de Felgueiras, cresceu no esclarecimento e na consciencialização contra o fascismo. O senhor padre, de sorriso aberto e luminoso, com aquelas palavras escolhidas e tão bem pronunciadas, falava do absurdo da Guerra Colonial, da injustiça, da exploração, do medo, da tortura da polícia política e da podridão do regime. Foi corajoso quando era preciso ser corajoso. Não teve medo, fez o que tinha de ser feito sem egoísmo, sem pensar em lugares de poder ou benesses pessoais. Foi preso, castigado, afastado, perseguido e discriminado, porque considerava que o papel da igreja é tomar partido, denunciar, informar, esclarecer, consciencializar, politizar, transformar vidas para que, como diz o evangelho, todos tenham vida e vida em abundância.

Quando eu frequentava a escola primária, o Padre Mário mobilizava multidões para assistir às suas homilias de domingo. Em nossa casa, à mesa, lembro-me de o meu pai e os meus irmãos falarem dos autocarros alugados provenientes dos concelhos mais distantes de todo o país que, ao estacionar, enchiam o largo do Cruzeiro. A PIDE costumava furar os pneus desses autocarros e muitas vezes lá levava o Padre Mário detido naquele jipe tão feio, cinzento-escuro.

Eu queria muito ser grande e crescido nesse tempo. Queria participar no grupo de jovens que o Padre Mário organizou, fazer teatro, ajudar na alfabetização, construir habitação social, aprender a tocar música, cantar com ele canções de protesto no altar da minha igreja. Queria ser grande e crescido para jogar voleibol no campo que ele comprou, queria ser mancebo para fugir à Guerra Colonial. Queria ser membro da cooperativa das bordadeiras da Lixa. Queria ser seu companheiro, para ir com ele à noite, clandestinamente, a casa do senhor Bernardino, falar dos direitos das mulheres oprimidas no casamento católico.

Nesse tempo do medo e do obscurantismo, o Padre Mário cumpriu com coragem, com capacidade intelectual e paixão o seu papel de sacerdote militante da causa dos pobres. Semeou muito, colheu menos, viu Abril abrir uma nova esperança de vida para os explorados. Celebrou porque ajudou a construir essa revolução. Foi expulso pela hierarquia da igreja e deixou Macieira. Mais tarde voltou. Fomos buscá-lo a Braga. Construímos uma comunidade de cristãos de base em Macieira da Lixa, reunimos, cantámos, lutámos, viajámos para outros territórios, conhecemos novos companheiros comprometidos com a transformação social do evangelho libertador. Aprendemos a ler com espírito crítico o jornal Fraternizar. Cresci muito com ele. Ensinou-me a não ser “cagarolas”. Sempre que eu lhe falava de uma luta de sucesso, dizia que já me devia ter metido noutra. Com o Padre Mário percebi que não há alegria maior do que lutar pelo bem dos outros. Com ele também percebi que ser incómodo e apanhar porrada dos que estão instalados no sistema é sinal de que estamos no caminho certo. Dia 30 de Janeiro de 2002, enviou-me uma carta onde se pode ler isto: “Querido José Antonio Pinto, nosso Chalana. No teu exemplo de vida militante encontro forças para prosseguir na minha vida como quem vê o invisível”.

Não sei, padre Mário, se um dia nos vamos encontrar para lutar e gargalhar longe daqui. Continuo, como sempre, amarrado a si. Explicando melhor: mesmo sem possibilidade de, a partir de agora, o poder abraçar, ficarei com a tatuagem do seu sorriso, do seu exemplo de vida, da sua coragem e coerência. Este texto é para lhe agradecer tudo o que fez sem medo contra a ditadura fascista e para lhe prometer que vou continuar a seguir, com todas as forças e entusiasmo, pelo caminho da luta, porque é como um dia me disse: “É aí, Chalana, que sentes a doce carícia da vida”. Até amanhã, Padre Mário!

Sugerir correcção
Ler 1 comentários