Votamos como somos

“Não vemos as coisas como são, vemos as coisas como somos”, dizia a escritora Anaïs Nin. E nós também votamos como somos, e o que somos vai muito para além do porta-moedas.

No seu ensaio Lógica, publicado em 1800, Kant defendia que as quatro questões filosóficas mais importantes eram: O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? O que é o homem? Para o filósofo prussiano esta última pergunta era a essencial, aquela que abarcava todas as outras. Esta questão da natureza e da identidade humana obcecou várias gerações de filósofos. O que somos? Quem somos?

Uns concentraram-se nas diferenças entre a espécie humana e os outros animais. É a razão, é a técnica, é a alma, responderam. Outros preferiram dentro da própria espécie humana estabelecer hierarquias para encontrar o modelo, o verdadeiro homem, o ser superior. Todos os outros teriam menos razão, menos técnica, menos alma. Razões religiosas e científicas foram instituídas. Essa diferença justificava tratamento diferenciado e em certos casos um esforço do homem superior em educar, civilizar o “povo agitado e selvagem/vossos cativos, tristes povos/ metade demónio, metade criança”, como escrevia Rudyard Kipling no seu poema The White Man’s Burden, de 1899.

Hoje, apesar do consenso científico sobre a inexistência de raças biológicas, as fantasias de superioridade e pureza persistem. Há poucas semanas, por exemplo, Diogo Pacheco de Amorim afirmou que os portugueses são de raça caucasiana. O empenho na conservação da sua suposta identidade é para alguns um verdadeiro projeto político. Vários partidos da extrema-direita insistem na importância de preservar uma identidade branca, cristã e virilista. A teoria racista e conspiracionista do “grand remplacement” ou da “substituição populacional” popularizada pelo ideólogo Renaud Camus, condenado por incitação ao ódio e à violência, influenciou assim terroristas supremacistas brancos, como o norueguês Anders Breivik ou o australiano Breton Tarrant. Esta teoria, porém, que, até há pouco tempo, estava confinada aos meios supremacistas mais radicais, foi aos poucos entrando na comunicação mainstream.

José Pinto Coelho teve a possibilidade, sem qualquer tipo de contraditório, de discursar várias vezes sobre esta teoria, com consequências criminosas, em direto na televisão portuguesa. André Ventura promoveu a teoria no seu programa eleitoral das últimas legislativas, e até a candidata conservadora às eleições presidenciais em França, Valérie Pécresse, credibilizou a teoria, criando uma crise no seio do seu próprio partido de direita.

Vladimir Putin, em plena reconquista de uma Grande Rússia em território ucraniano, defende uma identidade comum no seu artigo On the Historical Unity of Russians and Ukrainians, de 12 de julho de 2021, afirmando no início: “russos e ucranianos eram um só povo” e no fim “nós somos um só povo”. Contesta ainda uma política ucraniana assimilacionista violenta e considera que ela terá “consequências comparáveis a armas de destruição maciça” contra o seu povo, levando à redução de milhares, de milhões de russos. O grande desaparecimento.

Em 2007, a obsessão com a identidade nacional já tinha entrado no debate público francês - de forma hoje considerada mais subtil, mas que causou grande polémica na altura -, pela mão de Sarkozy, com a criação do Ministério da Imigração, da Integração e da Identidade Nacional. Nos Estados Unidos, Donald Trump reciclou o slogan Make America Great Again”, inspirando, em Portugal, Rui Rio, que no seu discurso de encerramento do 39.° congresso do PSD, declarou: “Temos de acreditar que o Portugal do século XXI pode voltar a ser grande. Tão grande quanto a dimensão da sua História.”.

Estes políticos sabem o que muitos analistas de comportamento de voto não sabem ou fingem não saber: que o racismo, o nacionalismo ou as ansiedades identitárias podem dar votos. Os eleitores não se identificam só como trabalhadores ou contribuintes. Não fazem uma cruzinha num boletim de voto unicamente com a sua caneta e uma movediça identidade de classe. Um estudo de janeiro de 2022 da Cevipof/Le Monde/Fondation Jean Jaurès sobre comportamentos de voto e identidade, mostra que os franceses que votam na extrema-direita declaram que aquilo que mais os identifica não é nem o emprego ou a classe social, mas em primeiro lugar a sua nacionalidade e em segundo a sua geração/idade, e são também os que mais dão importância à sua cor de pele e origem. A pertinência das diferenças de voto consoante o género, idade e nível de instrução nas últimas legislativas em Portugal foram também demonstradas pelos investigadores Pedro Magalhães e João Cancela.

“Não vemos as coisas como são, vemos as coisas como somos”, dizia a escritora Anaïs Nin. E nós também votamos como somos, e o que somos vai muito para além do porta-moedas. Temos identidades múltiplas às quais atribuímos prioridades diferentes dependendo do contexto. Acreditar, por exemplo, que é somente através da esfera económica que se combate a extrema-direita é um mau diagnóstico. E maus diagnósticos resultam em maus tratamentos e em cura alguma.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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