Sem um número de utente, eu sou nada?

Até quando vão ser colocados obstáculos, espera de minutos atrás de minutos, que excluem e ignoram pessoas “sem documento”? Até quando as obrigações públicas e colectivas serão da responsabilidade individual? Até quando vamos separar quem tem documento e quem não tem?

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Daniel Rocha

“Durante a pandemia, a linha poderá estar muito ocupada, a sua chamada encontra-se em espera e pedimos que não desligue.” Fiquei durante uma hora, 46 minutos e 33 segundos esperando ser atendida pela linha telefónica do Sistema Nacional de Saúde (SNS). Estava a tentar resolver a situação da minha colega que não possui número de utente e que apresentava sintomas de covid-19.

Não estou a criticar a espera em si, em tempos pandémicos a paciência é uma das virtudes que aprendemos a exercitar, assim como a compreensão para com um sistema do qual muitas pessoas dependem. Eu mesma utilizei quatro vezes a mesma linha telefónica. Esperei no máximo 26 minutos e tive apoio durante o meu isolamento. Mas eu tenho número de utente e, como imigrante, tenho todos os meus documentos regularizados.

O sistema telefónico do SNS já é preparado para agilizar o processo, solicitando que indiquemos o número de utente e da segurança social enquanto esperamos ser atendidos/as. Esse mesmo sistema não é preparado para quem não possui estes documentos, independentemente dos motivos que levam a pessoa a não os ter.

Tivemos pequenas comemorações. Em meados de Março de 2020, os pedidos pendentes de imigrantes foram regularizados, dando acesso aos serviços públicos. Em Março de 2021, as pessoas não inscritas no SNS tiveram uma plataforma que lhes permitiu ter acesso à vacinação. São acções específicas para lidar com situações que a pandemia potencializou, mas não são acções definitivas para resolver, de facto, o desamparo em que se encontram as pessoas sem número de utente, em situações irregulares ou até mesmo ilegais, etc.

Imagina que estás com sintomas de covid-19 ou que estiveste em contacto com uma pessoa positiva. Imagina que tens uma família para sustentar, obrigações para cumprir. O SNS é aquele que está lá para dizer “Está tudo bem, vamos dar o suporte necessário para o isolamento, para acompanhar os sintomas e, principalmente, para não o prejudicar e à sua família”.

Agora imagina que te encaixas na lógica “pessoa sem documento/número”. Podemos ter algumas hipóteses para desenrolar esta situação. Sem o apoio do SNS, se estiveres com sintomas fortes do vírus, precisas de faltar ao trabalho, correndo o risco de não ter uma justificação considerada válida e não receber o pagamento por esses dias — ou até mesmo receber uma carta de demissão. Qualquer um dos casos fica à mercê da boa vontade dos empregadores. Ou, então, se tiveres condições, para não te prejudicares, resolves ir trabalhar com o vírus, favorecendo uma situação de propagação do mesmo.

Fiquei durante uma hora, 46 minutos e 33 segundos esperando. Fui atendida e transferida para outras duas linhas. Mais espera. Contei com a boa disposição de funcionárias que queriam ajudar-me, mas com um sistema que não as permitia.

Moral da história: acaba por ser da conta da própria pessoa lidar com a situação. Mais uma vez, uma questão de saúde pública afoga-se no mérito individual. Na capacidade de a pessoa conseguir pagar um teste, de se munir de bons argumentos e diálogos para “chorar” por, pelo menos, um número de utente temporário.

Até quando vão ser colocados obstáculos, espera de minutos atrás de minutos, que excluem e ignoram pessoas “sem documento”? Até quando as obrigações públicas e colectivas serão da responsabilidade individual? Até quando vamos separar quem tem documento e quem não tem?

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