Governo cria plataforma para estrangeiros sem cartão de utente terem vacina contra a covid-19

Quem não está inscrito no Serviço Nacional de Saúde, incluindo estrangeiros em situação irregular, pode-se colocar na lista para a vacina. Associações têm ajudado imigrantes a preencher formulário, mas nem sempre o sistema responde.

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Quem não tem comprovativo de residência nem outro documento que prove que o seu pedido está a ser processado no SEF tem o mesmo acesso a cuidados de saúde Rui Gaudencio

A brasileira Sílvia Batista, 51 anos, soube recentemente que, apesar de a filha não ter número de utente no Serviço Nacional de Saúde (SNS), se podia registar numa plataforma criada para se inscrever na lista da vacinação contra a covid-19. 

Segundo o Ministério da Presidência, que tem a tutela das migrações, o Plano Nacional de Vacinação contra a covid-19 tem um carácter universal, ou seja, dirige-se a qualquer pessoa independentemente do seu estatuto legal. O Governo criou, assim, uma nova plataforma destinada aos cidadãos sem número de utente, disponível em https://servicos.min-saude.pt/covid19/vacinacao-nao-utente. Os imigrantes e refugiados nessa situação poderão submeter a sua inscrição para serem vacinados. E serão posteriormente contactados pelas Unidades Locais de Saúde.

Brasileira a viver há 13 anos em Portugal, Sílvia Batista tem tudo em ordem, incluindo número de utente e médico de família, mas a sua preocupação era com a filha de 27 anos, Jessica, que está à espera de receber a autorização de residência do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) — não pertence a um grupo de risco, mas quando chegar a altura de ser vacinada estará na lista. 

Jessica fez a chamada manifestação de interesse ao SEF (pedido de autorização de residência para quem está a trabalhar), há um ano que desconta para a Segurança Social, já tentou ter o cartão de utente do SNS, mas sem sucesso. Sílvia Batista, que trabalha numa escola, conhece muita gente na mesma situação da filha. Depois de várias tentativas de preencher o formulário há uns dias, em que deu constantemente erro, Jessica desistiu e irá tentar de novo noutra altura.

O Governo diz que o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) tem divulgado com regularidade informações sobre o acesso a cuidados de saúde, bem como as medidas de prevenção contra a covid-19. E que publicitou, e procurou informar os seus parceiros da sociedade civil, incluindo as associações, sobre a criação daquela plataforma. Lembra que os estrangeiros em situação irregular estão abrangidos por um despacho (n.º 25360/2001) que assegura que as situações de risco de saúde pública são financeiramente cobertas pelo SNS e asseguradas nas mesmas condições que existem para os portugueses (circular informativa n.º 12/DQS/DMD da Direcção-Geral da Saúde, DGS). Aliás, recorda, em 2020 mais de 56 mil cidadãos estrangeiros passaram a ter número de utente do SNS.

Quem não tem comprovativo de residência nem outro documento que prove que o seu pedido está a ser processado no SEF tem o mesmo acesso a cuidados de saúde, assegura ainda o Ministério da Presidência.

De resto, este ministério diz que o ACM vai continuar a desenvolver o trabalho conjunto com a DGS no sentido da publicação de orientações específicas referentes às pessoas migrantes e refugiadas, como “as que flexibilizaram os procedimentos para a obtenção do número de utente, facultaram medidas específicas a implementar em situações de vulnerabilidade e incentivaram o recurso a mediadores interculturais e às linhas de apoio”.

Associações ajudam a preencher formulário

No terreno, as organizações receberam aquela informação da plataforma recentemente e muitas dúvidas da parte dos estrangeiros. Na Casa do Brasil — que presta serviço à maior comunidade imigrante em Portugal — têm esclarecido algumas pessoas que não conseguiram completar o processo; outras tinham conseguido ao fim de algumas tentativas. 

No Centro Padre Alves Correia a directora executiva Ana Mansoa refere que receberam a informação do ACM, estão a contactar todos os utentes para os ajudar a preencher os seus dados (muitos são analfabetos ou sofrem de “iliteracia digital”). “Não temos informação, para já, de que tenham começado a ser contactados, mas também começámos há pouco tempo esse trabalho”, afirma. 

Por outro lado, Timóteo Macedo, da Solidariedade Imigrante (Solim), com mais de 40 mil associados, questiona o timing da divulgação da plataforma: “Nas grandes áreas metropolitanas os sectores mais afectados pelo covid e pandemia sob ponto de vista da saúde são as comunidades imigrantes e as mais vulneráveis socialmente — porque é que só agora, e não desde o início, é que fazem esta divulgação?”

Já passou uma semana desde que receberam a informação do ACM e não atenderam ninguém que os questionasse sobre a plataforma entre os 60 e 70 utentes diários que se deslocam à sede da Solim em Lisboa. “As pessoas estão desacreditadas do sistema. Estão afastados dos serviços públicos, com os centros nacionais de atendimento aos imigrantes fechados. Isto é um sinal de que as políticas públicas não englobam todos”, critica o dirigente. “Têm que ser inclusivas e não segregacionistas.”

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