Haverá mestrados a mais?

Em Education at a Glance 2019, a OCDE revela que em Portugal, de 100 inscritos no ensino superior, 33% estão inscritos em mestrado e 6% em doutoramento. A média da OCDE é 16% e 2%, respetivamente. Como explicar esta discrepância?

Prefiro o mundo das palavras ao mundo dos números, mas há números incontornáveis, que é obrigatório enfrentar. Em Education at a Glance 2019, a OCDE revela que em Portugal, de 100 inscritos no ensino superior, 33% estão inscritos em mestrado e 6% em doutoramento. A média da OCDE é 16% e 2%, respetivamente. Como explicar esta discrepância? As empresas portuguesas não são tão inovadoras que necessitem de mais mestres do que as outras empresas ocidentais. Igualmente, a sofisticação organizacional das entidades públicas e privadas portuguesas não requer mais e melhores competências. É ainda pouco provável que os estudantes portugueses sejam tão mais ávidos de conhecimento que reclamem mais mestrados e doutoramentos.

Háverá que diga que estas taxas são necessárias para que Portugal recupere o seu atraso educativo. Mas o razoável é que essa recuperação se faça pela convergência das taxas de escolarização, como acontece na licenciatura – 41% dos portugueses com 19-20 anos estão inscritos em licenciatura contra 37% em média na OCDE.

Acerca da “procura social” de mestrados

O número de jovens mestres é tão elevado em Portugal que as empresas dão prioridade aos mestres. Os alunos, percebendo que só com mestrado acedem a bons empregos, fazem um mestrado logo a seguir à licenciatura. Assim, os reitores justificam a sua elevada oferta de mestrados para responder “à procura social”, sem nunca referir que na realidade estão a contribuir para produzir tal procura. Hoje em Portugal, muitos mestrados servem mais para sinalizar a produtividade dos jovens do que para a aumentar. Ou seja, os jovens tiram um mestrado para sinalizar que têm mais competências do que os licenciados, e as empresas selecionam os jovens em função do diploma, afetando os mestres aos empregos mais qualificados e melhor remunerados.

Esta inflação dos diplomas denuncia um funcionamento enviesado do mercado de trabalho, provocado em parte pela excessiva oferta de mestrados, e explica que a taxa de sobre-educação (diploma e competências superiores às necessárias ao desempenho das funções) atinja em Portugal os 25%, taxa das mais elevadas da OCDE. Denuncia igualmente a premente necessidade de rever o modo de financiamento das universidades.

Outros efeitos perversos

O excesso de mestrados tem outros efeitos perversos. Um deles é o facto de as universidades públicas admitirem e conferirem mestrados a alunos a quem não teriam conferido licenciatura. Com efeito, muitos dos candidatos admitidos nos mestrados das universidades públicas não tiveram nota para entrar nessas instituições aquando da inscrição em licenciatura. Licenciaram-se em universidades privadas ou politécnicos e depois fazem o mestrado na instituição onde queriam tirar a licenciatura. Outro dado diz respeito à capacidade de orientação das teses. O rácio entre alunos inscritos em 2.º ano de mestrado e docentes de carreira varia entre 5 e 10 orientandos por orientador (rácio calculado para as instituições com dados publicamente disponíveis). Como se pode orientar com qualidade tantos mestrandos e doutorandos?

Na realidade, e é certamente o efeito mais perverso, estamos perante um enorme desperdício de recursos, públicos e privados, quando são necessários investimentos colossais para lutar contra o aquecimento global. Igualmente perverso é o facto de a inflação dos diplomas agravar a desigualdade de oportunidades face à inserção no mercado de trabalho. Os grupos sociais mais desfavorecidos, que já suportam dificilmente o custo da licenciatura, têm agora de financiar também um mestrado – sendo os mestrados mais caros também os mais reputados.

Obviamente que os alunos que verdadeiramente querem desenvolver os seus conhecimentos teóricos ou profissionais devem poder fazê-lo, a custos razoáveis. Deve-se promover a qualidade dos mestrados para recém-licenciados e profissionais. Mas é urgente que o Governo planeie e use os recursos públicos para, por exemplo, legar um planeta saudável aos jovens, em vez de atrasar a sua entrada na vida ativa.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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