Adiamos os sonhos lusófonos para depois que vencermos o vírus

O livro Cartas de Lá e Cá foi elaborado a partir da troca de correspondências entre 450 crianças portuguesas e brasileiras, de 7 a 14 anos, e editado para ser distribuído gratuitamente nas escolas.

Com a pandemia da covid-19 temos tempo novamente para escrever cartas! Tecendo o pensamento sobre história e memória, associei a ideia de tempo a algo que havia sido inscrito como conceito no ato de criação da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP), que em 2021 comemorou 25 anos. E que teve, entre seus fundadores, José Aparecido de Oliveira (1929-2007), ex-embaixador do Brasil em Portugal. Ele e os ex-presidentes de Portugal, Mário Soares, de Angola, José Eduardo dos Santos, e representantes da Guiné-Bissau, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe criaram a CPLP sob os fundamentos da fraternidade, a que se juntaria mais tarde Timor-Leste.

Passei a analisar quando substituímos todas as nossas trocas de cartas por emails. E como conciliar uma comunicação muito ágil, na qual se perde em razão dessa imposição de velocidade no “espaço tempo”? O tempo, no qual crianças enviam a informação e esta é recebida e no minuto seguinte, desaparece! Tempo é construção no existir e, se não compreendido, é uma ameaça de esvaziamento de sentido a alimentar desesperança.

Cartas exigem tempo para escrever, para postar e para esperar a resposta. Foi essa a reflexão inspiradora para a idealização do livro Cartas de Lá e Cá, elaborado a partir da troca de correspondências entre 450 crianças portuguesas e brasileiras, de 7 a 14 anos, editado para ser distribuído gratuitamente, nas escolas.

As centenas de cartas e os cartões-postais, individuais e coletivos, revelando pensamentos criativos, começaram a ser escritos como atividade de sala de aula, em fevereiro de 2019. Durante seis meses, foram trocadas correspondências entre 200 estudantes da Escola Básica de Óbidos, em Portugal, e 250 alunos de Conceição do Mato Dentro, fundada em 1842, no estado de Minas Gerais. A cidade histórica foi escolhida para o projeto por ser a terra natal do embaixador José Aparecido, meu tio e inspirador do livro e a quem homenageei em 2019, por ocasião dos seus 90 anos, na sede da ABL (Academia Brasileira de Letras).

Cartas de Lá e Cá é uma construção coletiva luso-brasileira, pois, além dos estudantes, os professores, e as diretoras das escolas – que utilizaram as cartas como matéria prima - conversaram muito sobre o acordo ortográfico, que regula 98% das palavras da língua portuguesa e através das cartas, puderam encontrar, inclusive as que fazem parte do grupo dos 2%.

Nessa troca – começada há mais de 500 anos -, e para organizar tantas conversas, foram selecionadas fotos e desenhos infantis. Esse projeto contou com o apoio do Instituto Camões e da Embaixada do Brasil em Portugal.

Como voluntária, estive em Óbidos, no final de 2019, embarcando do Rio com imensas malas, cheias de livros para o lançamento. Emocionou-me encontrar com os miúdos no auditório da escola. Os portuguesinhos me pediram para conhecer os novos amigos.

Assumi o compromisso de organizar um encontro virtual no dia 5 de maio de 2020- data que marcou a primeira edição do Dia Mundial da Língua Portuguesa, instituído pela UNESCO. Ao meu lado estaria José Fernando Aparecido de Oliveira, filho do homenageado, de quem recebi todo o apoio. A data foi simbolicamente escolhida para uma videoconferência entre os estudantes, que permitiria às crianças ampliar os seus conhecimentos sobre as relações históricas que nos entrelaçam a Portugal. Mas desde então o Mundo foi surpreendido pelo avanço da pandemia, e, em março, foi decretada a quarentena no Brasil. O mundo se fechou e fomos obrigados a cancelar o evento. Contudo, apenas adiamos os sonhos das crianças para depois que vencermos o vírus.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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