Bruno de Carvalho, a violência como entretenimento e as mentiras que nos contam sobre o amor

Não é dever de Liliana Almeida denunciar, reagir ou acusar o comportamento violento de Bruno de Carvalho: a violência doméstica é crime público porque decidimos, enquanto colectivo, que uma queixa de violência não depende de quem é vitimada ou agredida.

Foto
LUSA/RODRIGO ANTUNES

“Não te vou deixar dormir até sentir que tu me amas”, disse Bruno de Carvalho a Liliana Almeida, num reality show de enorme audiência. Uma alegada declaração de amor, entre tantos outros gestos de posse e intimidação (como o gesto físico de lhe agarrar o pescoço, entre demonstrações de ciúmes e tentativas de isolamento, passando pela estratégia de culpabilização: “O problema és tu”, disse o antigo presidente do Sporting a Liliana Almeida). Tudo isto à vista de todas/os, em horário nobre, para consumo rápido, para entretenimento.

Tudo isto aconteceu perante a inicial (e prolongada) inacção da TVI, canal emissor do programa, a que se somaram depois diversas declarações de Cristina Ferreira, escudando-se numa alegada “imparcialidade” e afirmando que o papel da televisão é entreter. Cristina Ferreira que, na última gala do Big Brother, afirmou que “só o amor pode resolver até as coisas mais condenáveis”.

Estas declarações são ilustrativas da forma como encaramos os media. Não, Cristina Ferreira, a televisão não é sobretudo entretenimento: os media são efectivos agentes de socialização, fabricam percepções colectivas sobre o que é o amor e a intimidade, sobre o que é lícito e expectável nas relações entre mulheres e homens. Por isso, a responsabilidade de quem comunica num palco de enorme audiência é impossível de minimizar.

Tudo isto é revelador, sobretudo, da nossa imensa tolerância à violência psicológica – ao gaslighting, à manipulação, à posse. É revelador, também, dos mitos que são contados sobre o amor – como se o amor fosse isto, esta encenação de luta, esta prova de sofrimento constante, esta vertigem de violência, este exercício de poder. Nada há de novo aqui: crescemos a erotizar a violência contra as mulheres, a confundir sedução com assédio, a tomar a posse como manifestação romântica, a assumir que o amor é uma loucura dolorosa. E, cada vez mais, a confundir desejo e prazer com agressão (uma cultura romântica e simultaneamente “pornificada” não poderia ser outra coisa que não uma bomba-relógio). Não surpreende, por isso, que Liliana Almeida tenha relativizado o aperto no pescoço e o tenha tomado como “carinho, amor, tensão, tesão”: Liliana não está sozinha nesta romantização do abuso.

Não é dever de Liliana Almeida denunciar, reagir ou acusar o comportamento violento de Bruno de Carvalho: a violência doméstica é crime público porque decidimos, enquanto colectivo, que uma queixa de violência não depende de quem é vitimada ou agredida. Porque a denúncia deste crime não pode ficar sobre os ombros das vítimas; porque o reconhecimento dos mecanismos e ciclos da violência pelas próprias vítimas não é um processo fácil ou imediato.

A violência doméstica (que não se reduz somente à agressão física) é crime público: é urgente lembrá-lo. Não carece de apresentação de queixa pela pessoa ofendida, porque reconhecemos que todas/os temos um papel no combate a este crime. Assumimos que nos cabe a todas/os denunciá-lo, e que o nosso silêncio nos torna cúmplices. Esta foi uma conquista – a consagração legal de que todas/os somos responsáveis e de que o dever de denúncia e intervenção é colectivo. É uma conquista, porquanto a ideia de que a violência cometida por parceiros íntimos é privada permanece, apesar de todos os esforços. Perante a violência, o discurso da “imparcialidade” é quase sempre um encolher de ombros e uma desculpa para a indiferença, muitas vezes mascarada de elevação ética. Não, Cristina Ferreira: o vosso (nosso) silêncio não é imparcial; perante a violência, a inacção é uma escolha.

Num mês de celebração do amor romântico, importa lembrar que o amor não é isto, que o carinho não é isto. O amor não magoa, não humilha, não isola, não esmaga, não coage – não dói.

Sugerir correcção
Ler 24 comentários