O sistema eleitoral precisa de um aparelho auditivo

O argumento de que o atual sistema promove a governabilidade revela uma visão utilitarista que encara as eleições como forma de exercer o poder e não de ouvir o eleitorado.

A 23 e 30 de janeiro passados, os portugueses foram chamados a eleger o Parlamento. No nosso atual sistema eleitoral, a voz do eleitorado é ouvida com muitas distorções, de modo que a configuração do hemiciclo acaba por não refletir fielmente a opinião nas urnas. Para sustentar esta afirmação, basta consultar as estatísticas das últimas legislativas.

O PS obteve 42,40% dos votos (não-nulos e não-brancos), contudo, em S. Bento, detém 51,74% dos assentos. No extremo oposto, está o BE, que com 4,51% dos votos apenas conquistou 2,17% do total de deputados. Já o CDS contabilizou mais 17.603 e 39.905 votos que o Livre e que a coligação de direita na Madeira (PSD-CDS), mas não conseguiu nenhum mandato, enquanto estes elegeram um e três deputados, respetivamente. Por fim, em média, PS e PSD necessitaram apenas de 19.696 e 21.532 votos para eleger cada um dos seus parlamentares, contrastando com os valores mais elevados de Chega (34.247), IL (34.461), CDU (40.413) e BE (49.917). São números que evidenciam a distorção existente na conversão de boletins em mandatos.

O corolário deste sistema é a multiplicação de votos inúteis, ou seja, aqueles boletins que em nada contribuem para a eleição de deputados. O seu peso é tão importante que se tornou num argumento esgrimido por Rui Rio e António Costa para angariar mais eleitores. Em relação ao último plebiscito, o politólogo Humberto Teixeira estima que mais de 671 mil votos (13% do total) foram desperdiçados. Houve um caso em que a opinião de mais de metade dos eleitores foi ignorada. No círculo de Portalegre, o PS, com 25,271 votos, arrebatou os dois deputados do círculo, pelo que os restantes 27,591 boletins foram irrelevantes.

Na minha opinião, a estimativa de Humberto Teixeira peca por defeito, porque apenas considera os votos nos partidos que não conseguiram mandatos. Contudo, mesmo entre os que elegeram há desperdício de votos. Veja-se o caso do círculo de Viana do Castelo (seis deputados), onde os três partidos mais votados foram PS (53.435 votos), PSD (43.414) e Chega (7702). Usando o método de Hondt, os mandatos distribuem-se assim, conforme a Tabela 1.

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Isto corresponde à divisão de três deputados para socialistas e três para sociais-democratas (negrito na tabela). Se estes partidos tivessem obtido apenas 23.108 votos cada um, o resultado seria exatamente o mesmo, como se vê na Tabela 2.

Para a eleição do quinto e sexto deputado, PS e PSD obteriam terceiros quocientes superiores ao primeiro quociente do Chega, conquistando aqueles mandatos. Assim, dos 96.849 votos obtidos por PS e PSD em Viana 50.633 foram irrelevantes. Juntando os 27.367 votos que se distribuíram por outros partidos, temos 78 mil votos inúteis (63% do total). Aplicando este raciocínio aos restantes círculos, temos os seguintes resultados totais nacionais. (Tabela 3)

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A percentagem de votos que não se converteram em mandatos ultrapassa os 25% (mais de 1,3 milhões de portugueses). Como também é apontado por Humberto Teixeira, a praga dos votos inúteis não afeta todos os partidos por igual. PS e PSD têm menos razões de queixa (11,75% e 17,70% dos seus votos não contaram para eleger deputados) do que, por exemplo, bloquistas e comunistas para quem mais de metade das votações (55,93% e 51,4%) foi irrelevante. O corolário deste desequilíbrio é que fora dos grandes círculos é praticamente impossível aos partidos pequenos eleger. Um liberal de Beja ou um comunista de Viseu que argumente que “não vale a pena votar” tem efetivamente razões objetivas para não o fazer.

Alguns leitores contra-argumentarão que estes resultados se ficam a dever à divisão do eleitorado em círculos eleitorais que elegem mais deputados consoante tenham mais população e que este é um sistema justo por permitir que as regiões mais povoadas tenham maior representação no Parlamento. Este seria um argumento razoável, se não fosse contra a Constituição, que, no art.º 152.º, n.º 2, estipula claramente que os deputados “representam todo o país e não os círculos por que são eleitos”. Por outras palavras, é completamente indiferente se o deputado é eleito por Bragança ou Lisboa. Uma vez no Parlamento, age em nome de todos os cidadãos e não apenas em nome dos que o elegeram.

Outros sustentam que o atual sistema promove “as condições de governabilidade sem grandes problemas”. Este argumento ilustra uma visão utilitarista do voto, que vê nas eleições uma forma de exercer o poder e não de ouvir o eleitorado. Adicionalmente, é perigoso para a própria democracia. Se o objetivo das eleições é a governabilidade, considerar-se-á desejável o sistema eleitoral da segunda metade do século XIX português, que gerava maiorias absolutas sucessivas à custa de irregularidades várias? Ou pior: um sistema de partido único?

Pelas razões aduzidas, a manutenção do atual sistema eleitoral é inaceitável, tendo já sido aventadas diversas soluções. Eu inclino-me para a solução de um círculo nacional único com distribuição de mandatos pelo método de Hondt, pela sua simplicidade e representatividade da vontade do eleitorado. Se este sistema já estivesse em vigor, os resultados eleitorais das últimas eleições seriam os seguintes (Tabela 4):

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Este Parlamento representava mais fielmente a vontade dos eleitores, já que as percentagens de votos e de deputados andariam a par. O mesmo para a média de votos/deputado, que seria mais uniforme. Por fim, o número de votos inúteis reduzia-se drasticamente para 4% da totalidade dos boletins. É certo que não favoreceria uma “governabilidade sem grandes problemas” e exigiria capacidade de diálogo, o que, não é necessariamente algo de negativo, bem pelo contrário.

Resta saber se haverá vontade política para proceder à alteração. Provavelmente não, tendo em conta que os dois principais partidos beneficiam do sistema atual. Neste cenário cabe aos pequenos partidos pressionar no parlamento pela mudança do sistema e aos cidadãos fora do hemiciclo exigir essa mesma alteração, demonstrando assim que a participação democrática não se esgota na colocação de um boletim de voto numa urna.

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