Quando ele voltou atrás

A salada da cadeia de junk food tinha adquirido a possibilidade de ramo de flores. Assim se vive no tempo em que as coisas não são de facto aquilo que são. Uma coisa não é uma coisa.

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Long Truong/Unsplash

Várias garrafas de vinho depois de inúmeras pequenas narrativas mais ou menos significantes trocadas à mesa de jantar, quase sempre interrompidas por outras histórias empoladas pelo entusiasmo da amizade presencial, e ali estávamos: à porta do bar, com o copo novamente atestado e a língua apta a novas confidências. O álcool continua a ser a única receita eficaz como antídoto para as saídas nocturnas nesta época do ano e para o desembaraçar da língua.

Sou um homem solteiro. Não sou jovem e não sou velho. Encontro-me naquele período em que começo a preocupar-me com a minha idade. Apesar de muita gente à minha volta me dizer que estou maravilhoso, que não pareço nada ter a idade que tenho (apesar de ninguém saber exactamente qual é porque eu nunca o digo), que a idade não tem importância, etc. e tal, sei que não é um problema fictício. Talvez seja uma situação que diga sobretudo respeito às mulheres hetero e aos homens homossexuais. Somos muitas vezes avaliados, chamemos-lhe no mercado sexual e amoroso, pela idade que temos. Não adianta dizer que não. É curioso perceber que não acontece com tanta frequência este tipo de discriminação, esta perda de valor devido à idade, entre mulheres lésbicas e homens heterossexuais. Nestes casos, a experiência parece que lhes confere algo de atraente. Mas no meu caso, entre os homens gay, existe esta questão. Por isso, há muito que deixei de dizer a minha idade quando sou abordado por homens visivelmente mais jovens, ou sejam de que idade forem. Digo que tenho 70 anos como graça, e a verdade é que me sinto assim muitas vezes, e deixo-os à vontade para ficcionarem porque sei que pareço mais jovem do que sou.

Estávamos à porta do bar entre piadas e memórias quando ele apareceu. Há tantos anos que lhe acho graça. Não se trata apenas de um homem bonito, atraente. É alguém com uma inteligência, intuição e sensibilidade acima da média. E é tão bonito. Estremeci ligeiramente. Já não sou dado a grandes sobressaltos. Dois dedos de conversa e já se estava a despedir. Vinha acompanhado por duas pessoas que se mantiveram à distância: a sogra e o namorado. Vi-o afastar-se e pensei: Quel dommage. A tristeza ligeira sempre é mais elegante em francês.

Voltei à conversa com os amigos; os amigos e as amigas são o melhor da vida, toda a gente devia saber isto. Mas no momento exacto em que me tinha esquecido daquela passagem fugaz, eis que voltou. As minhas células alegraram-se. “Ele voltou atrás, ele voltou atrás”, parecia ouvir o meu cérebro repetidamente. Era bastante evidente que estávamos ambos felizes com aquele reencontro. Os olhos e os dentes dele brilhavam. Eu brilhava por dentro, de ânimo lavado. Conseguia vê-lo, apesar da fraca iluminação da rua. Que homem encantador, talvez das pessoas mais amáveis que conheci nos últimos anos. Um homem a sério, um homem para casar. Não que eu quisesse casar, mas trata-se de uma pessoa com potencial para ser companheiro; cada vez mais raro de encontrar. Mas tratava-se também de um homem comprometido. Não que eu faça qualquer espécie de julgamento sobre isso, meus amigos, eu tenho 70 anos e um cardápio infindável de erros, quem sou eu para julgar? Mas por que teria voltado atrás? Não soube. Não quis saber a fundo. Estava bem assim.

Conversámos pela noite dentro, os amigos foram-se despedindo um a um e ficámos só nós ao relento, numa esplanada de um bar fechado. Contei-lhe algumas das minhas fragilidades e desgostos. Ele ouviu com atenção, senti-me escutado. Depois caminhámos até encontrarmos um restaurante aberto. Comida junk food com vista para um conceituado teatro da cidade. Eu tinha comprado uma salada que não cheguei a abrir. Quis oferecer-lhe. Primeiro recusou. Como explicaria à sogra e ao namorado entrar em casa de madrugada com uma caixa de salada?

Acabou por ceder. Levá-la-ia. A salada da cadeia de junk food tinha adquirido a possibilidade de ramo de flores. Assim se vive no tempo em que as coisas não são de facto aquilo que são. Uma coisa não é uma coisa. À espera do meu táxi, vi-o afastar-se pela segunda vez nessa noite, levando o bouquet de salada que lhe oferecera. E veio-me à memória a música do Bob Dylan, When he returns, e o verso “Truth is an arrow and the gate is narrow that it passes through”.

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